O delito de fraude à licitação, antes previsto no artigo 90 da Lei 8.666/93 e hoje tipificado pelo artigo 337-F do Código Penal, é, por consenso doutrinário e jurisprudencial, um crime de natureza formal[1]. Tanto é assim que o Superior Tribunal de Justiça editou o enunciado da Súmula 645, que dispõe: “O crime de fraude à licitação é formal, e sua consumação prescinde da comprovação do prejuízo ou da obtenção de vantagem.”[2]
Isso significa que sua consumação ocorre no momento em que há ajuste entre os partícipes para fraudar ou frustrar a competitividade – geralmente antes e/ou durante a sessão pública do certame –, independentemente do resultado da licitação ou da efetiva celebração do contrato com o ente público. O traço característico desse crime é a prática de algum expediente desonesto que, de alguma forma, inviabilize, prejudique, macule o caráter competitivo do procedimento licitatório.
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Segundo André Guilherme Tavares de Freitas, “identifica-se nesse tipo penal a conduta de “frustrar ou fraudar o caráter competitivo do procedimento licitatório”, como meio de praticar tal conduta, o “ajuste, combinação ou qualquer outro expediente’ e, por fim, como resultado naturalístico desse proceder a ‘vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação’. Com efeito, apesar de o legislador mencionar nesse tipo o resultado naturalístico, não exige sua ocorrência para consumar o crime, mas apenas, que o agente tenha atuado com a intenção de […] obtê-lo, pelo que vindo efetivamente a alcançar este resultado o crime será tido como exaurido, porém consumado já estava desde o momento em que o caráter competitivo do certame foi frustrado ou fraudado. Temos aqui, por conseguinte, hipótese de crime formal”[3].
De fato, o STJ e o STF já se manifestaram no sentido de que, tanto o antigo delito previsto no artigo 90 da Lei 8.666/93 quanto o tipo penal esculpido pelo artigo 337-F do Código Penal são – no contexto da continuidade-típico normativa de um para o outro –, formais, ou seja, cuja consumação se dá mediante o mero ajuste, combinação ou adoção de qualquer outro expediente com o fim de fraudar ou frustrar o caráter competitivo da licitação, independente da obtenção de vantagem, para si ou para outrem, decorrente da adjudicação de seu objeto. Assim, a consumação do delito independe da homologação do procedimento licitatório.[4]
A doutrina, tanto antes quanto depois da alteração da antiga Lei de Licitações, é unânime ao afirmar que o bem jurídico protegido é a probidade e a moralidade administrativas[5], além da lisura do procedimento licitatório, e não a contratação em si.
Guilherme de Souza Nucci, por exemplo, ao comentar o antigo artigo 90 da Lei 8.666/93 é enfático ao afirmar que “o objeto jurídico é a proteção dos interesses da Administração Pública, nos seus aspectos material e moral”.[6]
Já Luciano Anderson de Souza, em análise dos tipos transplantados ao Código Penal, também consigna que “o bem jurídico protegido nos crimes em licitações e contratos administrativos volta-se às funções públicas, ou seja, ao regular funcionamento das atividades públicas”.[7]
Segundo o Superior Tribunal de Justiça, o objeto jurídico que se objetiva tutelar é a lisura das licitações e dos contratos com a Administração, “notadamente a conduta ética e o respeito que devem pautar o administrador em relação às pessoas que pretendem contratar com a Administração, participando de procedimento licitatório livre de vícios que prejudiquem a igualdade, sob o viés da moralidade e da isonomia administrativas”.[8]
Em referido precedente paradigmático, o ministro Rogério Schietti explica que é irrelevante discutir se houve, ou não, prejuízo ao erário porque “o crime pode se perfectibilizar mesmo que haja benefício financeiro da Administração Pública, quando, v.g., determinado licitante obtém a informação antecipada do preço apresentado pelos concorrentes e, com a participação de servidor público responsável pela licitação, propõe preço menor e obtém êxito”.
E mais: o crime poderá ser considerado consumado mesmo quando, eventualmente, há a fraude no certame e, tempos depois, este é suspenso, cancelado ou até mesmo anulado, não havendo, portanto, sequer assinatura de contrato com o Poder Público.
Entretanto, a despeito do consenso quanto à classificação formal do delito, o STJ, de forma majoritária e em clara contradição, tem considerado como termo inicial da prescrição o dia da data da assinatura do contrato administrativo, ignorando completamente a consumação anterior do crime.
No julgamento unânime do AgRg no HC 925.495/MG pela 5ª Turma, por exemplo, o acórdão, de lavra do ministro relator Reynaldo Soares da Fonseca, registrou que: “A jurisprudência desta corte entende que a contagem do prazo prescricional para o delito previsto no art. 90 da Lei 8.666/1993 se inicia com a assinatura do contrato administrativo”.[9]
O mesmo entendimento foi fixado também em outros casos como no HC 484.690/SC (Dje 4/6/2019) e no RHC 136.462/MG (DJe 08/02/2021), ambos de relatoria do ministro Ribeiro Dantas.
Como se nota, essa interpretação não apenas desrespeita a dogmática penal, como também gera graves prejuízos aos jurisdicionados, ao prolongar, artificialmente, o marco prescricional de um delito formal para momento posterior em que, frisa-se, não ocorre nenhum dos verbos-núcleo do tipo.
O Código Penal, em seu artigo 14, inciso I, preceitua que o crime se considera consumado quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal. Já o artigo 111, inciso I, do mesmo diploma, afirma que a prescrição começará a correr, antes de transitar em julgado a sentença, do dia em que o crime se consumou.
A doutrina consolidada afirma que o termo inicial da prescrição da pretensão punitiva é contado a partir do dia da consumação do delito, sendo que “a formalização da contratação constitui mero exaurimento do crime”.[10]
E não poderia ser diferente, pois se nos crimes formais a consumação é instantânea, uma vez que todos os elementos do tipo penal estão presentes nesse momento, a prescrição deveria começar a correr na data em que a conduta foi perpetrada e não no momento da produção do resultado.
Entender como válido o entendimento sumulado e, simultaneamente, o entendimento jurisprudencial que posterga o início da prescrição é o mesmo que afirmar que o crime se consumou quando ocorreu o procedimento licitatório (antes ou durante), mas que a prescrição, subvertendo toda a lógica do direito penal, constitucional e brasileiro, só passará a correr quando (e se) o objeto for adjudicado, no dia da assinatura do contrato público.
Não há explicação lógica para que tal entendimento prevaleça. A prescrição é um instituto relevantíssimo no ordenamento pátrio e tem uma dupla função: impossibilitar que o Estado possa punir alguém que cometeu um crime sem um prazo de tempo razoável, tornando a pessoa refém da punição estatal; e garantir que os mecanismos públicos punitivos (no caso, o Ministério Público, geralmente) cumpram com suas funções em tempo hábil[11].
Assim, manipular a prescrição, criando marcos não previstos em lei, alargando o início do seu cômputo e, pior, contrariando o próprio entendimento sumulado da Corte Cidadã é, no mínimo, contraditório. Os entendimentos expostos (um sumulado e outro majoritário quando versa sobre computo prescricional) por questão simples de lógica, sequer podem coexistir.
Não se pode olvidar, como já dito, que a natureza formal do crime de fraude à licitação decorre da própria estrutura do tipo, que pune a conduta de fraudar ou frustrar o caráter competitivo do certame, sem exigir qualquer resultado ou desdobramento ulterior.
Todavia, quando o assunto é a prescrição, o mesmo tribunal que reconhece a classificação formal do delito abandona essa lógica e passa a exigir um elemento estranho ao tipo penal – a formalização de um contrato administrativo – para considerar iniciado o curso do prazo, a despeito do tempo do crime.
A jurisprudência dominante, majoritária e, até o momento, prevalecente do STJ construiu um paradoxo, pois não guarda sintonia alguma com a própria súmula editada pela Corte Cidadã.
Essa incoerência transforma um crime formal em um pseudo-crime material, violando o princípio da legalidade e criando uma figura híbrida inexistente no ordenamento jurídico.
O prejuízo aos réus, nesses casos, é evidente e gravíssimo.
Se o crime se consuma no momento do ajuste, mas a prescrição só começa a correr em momento posterior, com a assinatura do contrato administrativo, o acusado fica submetido a uma incerteza jurídica prolongada, muitas vezes por longos períodos.
Aliás, a situação é ainda mais kafkiana em casos em que há aditivos nos contratos públicos decorrentes de procedimentos licitatórios apontados como fraudados.
Isso porque o mesmo STJ já negou o reconhecimento da ocorrência da prescrição em caso no qual restou decidido que “cada prorrogação contratual configura continuação da prática delituosa, na medida em que a situação de dano prolonga-se enquanto durar a conduta do Agente.”[12], o que expande ainda mais o marco de início prescricional.
Tais entendimentos criam uma distorção que desequilibra por completo a relação temporal do direito de punir do Estado, convertendo a prescrição – que deveria ser um mecanismo de segurança jurídica – em uma espada de Dâmocles suspensa indefinidamente sobre o acusado.
Além disso, essa interpretação gera um tratamento desigual entre réus que praticaram condutas idênticas. Dois casos de fraude à licitação podem ter a mesma data de ajuste ilícito, mas, se em um deles houver assinatura contratual posterior, ou pior, se houver aditivo ao contrato, os prazos prescricionais serão radicalmente distintos, sem qualquer justificativa racional.
Não se pode esquecer que a prescrição penal é um direito subjetivo do acusado, cuja função é justamente evitar que a ameaça da ação penal persista por tempo indeterminado, assegurando que o processo ocorra dentro de um prazo razoável, conforme garantia constitucional do cidadão.
Ao postergar artificialmente o início da prescrição, o STJ está, na prática, negando esse direito e permitindo que o Estado atue com morosidade sem qualquer consequência.
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É urgente que STJ revisite tal posicionamento, sob pena de perpetuar uma interpretação que desfigura o tipo penal, ofende os princípios da legalidade estrita e, sobretudo, prejudica de maneira intolerável o réu.
Sim, pois a doutrina processual penal é clara ao estabelecer que a prescrição, em crimes formais, deve se iniciar com a consumação do delito, que ocorre no momento em que se reúnem todos os elementos de sua definição legal. Não por outra razão, em todos os demais crimes formais do ordenamento jurídico brasileiro, o marco prescricional coincide com o momento consumativo.
Criar uma exceção específica para o crime de fraude à licitação, condicionando o início da prescrição a um ato posterior e eventual – a assinatura do contrato público –, representa não apenas uma violação ao princípio da isonomia, mas também uma afronta direta ao princípio da tipicidade, corolário do princípio da legalidade penal.
Manter o entendimento atual é compactuar com uma injustiça que apenas beneficia a ineficiência do Estado e sacrifica a segurança jurídica do jurisdicionado, o que não se pode admitir.
[1] Nesse sentido, é o posicionamento doutrinário, tanto antes, quanto após a alteração legislativa estabelecida pela Lei 14.133/2021, vide: ANDREUCCI, Ricardo Antônio. “Legislação penal especial 9ª. Ed. atual. e ampl.” São Paulo: Saraiva, 2013, p. 511 e; NETTO, Allamiro Velludo Salvador. “Crimes em Licitações e Contratos Administrativos.” – São Paulo: Quartier Latin, 2023, p. 101.
[2] Terceira Seção. Dje 18/2/2021.
[3] “Crimes na Lei de Licitações. 3. Ed.” – Niterói: Impetus, 2013, p. 92.
[4] REsp n.º 1.840.783. Min. Rel. Messod Azulay Neto, Dje 10/6/2025 e; HC n. 116.680/DF, 2ª Turma, Rel. Ministro Teori Zavascki, publicado no Dje 13/2/2014.
[5] Segundo Vicente Greco Filho “o bem jurídico amparado é a moralidade e regularidade do procedimento licitatório, protegendo-se, no caso específico, a igualdade e a competividade do certame” (Dos crimes da lei de licitações, 2º ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 75.
[6] Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. – 6ª ed. rev., reform. e atual. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 407.
[7] Crimes contra a administração pública. 3ª ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo. Thomson Reuters Brasil. 2024. p. 108
[8] Eresp n.º 1498982, Rel. Min. Rogerio Schietti, DJ 18/4/2016
[9] Dje 12/9/2024.
[10] Código Penal Comentado. / coordenação Luciano Anderson de Souza. – 2 ed. rev., atual., e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. Vários Autores. P. 1178.
[11] https://www.projuris.com.br/blog/prescricao-penal/
[12] RHC n.º 119.667/SP, Min. Rel. Laurita Vaz Dje 18/12/2020.

