A denunciação da lide é, historicamente, uma técnica processual carregada de formalismo. Concebida como instrumento de preservação do direito de regresso, com respaldo no artigo 125 do Código de Processo Civil, sempre operou dentro de limites normativos estritos: exige vínculo jurídico e pressupõe obrigação legal ou contratual de reembolso.
No entanto, uma série de recentes julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem instigado um novo olhar sobre o instituto. A despeito de o núcleo duro da jurisprudência continuar reafirmando a natureza excepcional e os requisitos rígidos da denunciação, percebe-se uma inclinação pontual (e reveladora) da corte à luz de valores processuais contemporâneos, como economia, efetividade e racionalidade procedimental.
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Essa ambiguidade interpretativa abre espaço para uma indagação: a denunciação da lide estaria sendo ressignificada como ferramenta de organização processual, para além de sua finalidade clássica de garantir regresso?
Um dos precedentes que melhor evidenciam esse deslocamento interpretativo é o REsp 2.128.955/SP, julgado pela 3ª Turma do STJ em novembro de 2024. Embora a controvérsia central não envolvesse diretamente a denunciação da lide, a corte reconheceu a possibilidade de modificação do polo passivo após o saneamento do processo, desde que preservadas a causa de pedir e o pedido.
Na prática, o julgamento reforçou a ideia de que a estrutura do processo pode (e deve) se adaptar a contextos que exijam maior efetividade, sempre que isso não implicar prejuízo à defesa nem quebra da legalidade processual. A decisão foi celebrada por parte da doutrina como expressão do “saneamento subjetivo” da lide, evidenciando uma abertura interpretativa mais pragmática.
Já no REsp 1.670.232/SP, também da 3ª Turma, a ministra Nancy Andrighi reconheceu a possibilidade de denunciação da lide entre corréus que já integravam o polo passivo da demanda, com fundamento em vínculo contratual e desde que não houvesse inovação fática.
A tese firmada é, por si só, disruptiva dentro do modelo tradicional: admite-se que um réu denuncie outro que já está na relação processual – solução que, embora lógica sob a ótica da gestão da responsabilização, representa certo alargamento das fronteiras do artigo 125 do CPC.
Ressalta-se, inclusive, que a ministra foi categórica ao afirmar que “nada obsta a denunciação da lide requerida por um réu contra outro corréu”.
Apesar dos sinais de flexibilização, o STJ continua a reafirmar a leitura clássica do instituto em situações que extrapolam os seus requisitos legais. No AgInt no AREsp 2.551.247/GO (2024), a 1ª Turma rechaçou a denunciação proposta em face de terceiro sem vínculo contratual ou legal de regresso, sob o fundamento de que a manobra processual se prestava, na verdade, a mera transferência da responsabilidade.
O mesmo raciocínio foi reproduzido nos julgados AgInt no AREsp 2.613.118/SP e AgInt no AREsp 1.845.332/SP, reafirmando a natureza subsidiária da denunciação da lide e a necessidade de sua utilização apenas quando houver título jurídico claro que fundamente o reembolso. Em outras palavras: o que se admite são relações jurídicas de regresso previamente definidas, não conjecturas sobre eventual responsabilidade.
Esse posicionamento é coerente com o §1º do artigo 125 do CPC, que deixa clara a possibilidade de propositura de ação autônoma caso a denunciação não seja utilizada, reforçando a natureza facultativa e instrumental do instituto, e não sua essencialidade para responsabilização futura.
O debate que se desenha, e que merece atenção, é sobre o papel contemporâneo da denunciação da lide à luz de um processo que se pretende cooperativo, eficiente e racional.
Diante das inflexões interpretativas mais recentes, é possível identificar uma tendência de ressignificação do instituto da denunciação da lide, cuja aplicação passa a ser concebida também como instrumento de racionalização e saneamento da relação processual.
Essa perspectiva se alinha a um modelo de processo civil menos formalista e mais comprometido com a funcionalidade do sistema, sobretudo diante de litígios complexos que envolvem responsabilidade solidária, cadeias de fornecimento ou a participação de múltiplos sujeitos cujas obrigações são marcadamente interdependentes.
Se por um lado essa abordagem oferece ganhos em termos de economia e organização da marcha processual, por outro impõe o desafio da coerência jurisprudencial e da segurança jurídica, especialmente em contextos onde a flexibilização possa parecer casuística.
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O que se observa no STJ é um movimento ainda incipiente, mas significativo: a denunciação da lide, embora permaneça ancorada em vínculos de regresso legal ou contratual, vem sendo gradativamente percebida como ferramenta útil para o redesenho da estrutura processual, sobretudo quando isso favorece a delimitação precisa das responsabilidades no processo.
Esse uso ampliado, no entanto, exige cautela. A denunciação, para cumprir esse novo papel, precisa estar ancorada em critérios objetivos, coerência interpretativa e respeito aos limites legais. A ausência de um norte jurisprudencial claro pode levar a um cenário de incertezas, no qual o instituto oscile entre o rigor técnico e a instrumentalização estratégica desmedida.
Em meio a essa tensão entre o formalismo e a efetividade, o desafio da advocacia, e também da magistratura, está em utilizar a denunciação como instrumento de racionalidade, sem trair sua natureza jurídica ou comprometer a estabilidade do rito processual.