O Brasil aprendeu a se olhar no espelho da brancura como se fosse um paraíso da democracia racial. Desde a Lei Áurea, instaurou-se o pacto de silenciamento: falar de racismo tornou-se ameaça à unidade nacional e quem ousasse quebrar o silêncio era tratado como inimigo da Pátria.
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Esse pacto, erguido sobre a negação das violências históricas e cotidianas, bloqueou a possibilidade de construção de uma democracia real, pluriversal e equitativa. A cada geração, aprendemos que o racismo não deve ser nomeado, como se o silêncio fosse uma virtude, e não uma imposição estratégica para a manutenção dos privilégios. O racismo à brasileira não é “velado”, ele é de uma violência extremamente sofisticada.
Ainda hoje, mesmo com todos os avanços sobre o debate racial, quem resolve romper com o pacto de silenciamento sofre as consequências do sistema. Esse custo é maior para mulheres negras, que historicamente não foram autorizadas a falar nem a conduzir o próprio destino. Quando ousamos quebrar essa ordem e fazemos nossas vozes ecoarem, nos colocamos como agentes diante de uma sociedade moldada para descartar nossos corpos e nossos saberes.
Essa disrupção provoca reações que vão das microagressões diárias às retaliações, auditorias, processos administrativos disciplinares, assédio moral e, em seus níveis mais extremos, pela violência política e pelo feminicídio político. Trata-se de um mecanismo perverso de contenção, construído para manter a estrutura intacta e punir exemplarmente quem ousa estilhaçar as máscaras do silêncio.
Por isso, romper com o pacto de silenciamento é tarefa inadiável de qualquer Instituição que se diga comprometida com o Estado Democrático de Direito. O combate aos racismos cotidianos não pode depender apenas de mártires — pessoas que sacrificam corpo e alma para lutar por equidade, assumindo as consequências dos novos pelourinhos. A obrigação de lutar contra o racismo é de toda a sociedade, mas sobretudo das Instituições, destacando-se as do Sistema de Justiça, em especial, da Advocacia Pública.
E quando olhamos para a Advocacia Pública, em específico, a sub-representação negra e indígena não é mero detalhe estatístico: é um filtro que altera a própria interpretação e aplicação das leis, invisibilizando perspectivas e dificultando a implementação de políticas públicas diversas. A ausência de advogadas negras em cargos de chefia e direção não é acaso: é reflexo de estruturas que preterem nossos corpos e vozes — sobretudo as dissidentes, que não se conformam às regras da Casa Grande.
As mulheres advogadas, públicas ou privadas, denunciam a existência de um teto de vidro que as impede de ascender na carreira e de ocupar cargos de direção e chefia. Quando falamos de mulheres negras e indígenas, não há apenas um teto, mas uma porta de vidro, que nos barra a entrada em determinados espaços — como bem apontou a advogada Marcelise Azevedo, na Conferência Nacional da Advocacia, em 2020. Não à toa, os números mostram que nós, mulheres negras, não chegamos a ocupar 5% dos cargos no sistema de justiça.
Daí a importância da categoria jurídico-política da interseccionalidade, que compreendo como princípio constitucional implícito, um verdadeiro meta-princípio, dotado de função hermenêutica. Assim como a proporcionalidade, a interseccionalidade deve ser acolhida como norma de segundo grau, capaz de estruturar modos de raciocínio e prescrever formas de aplicação em todos os subsistemas sociais, sobretudo no Direito e na Política.
Desde 2018 tenho defendido que a interseccionalidade seja tratada como postulado: um deslocamento do intérprete para a encruzilhada, de onde se abrem múltiplas direções possíveis de leituras e decisões. Esse lugar de intersecção permite ver o que a pretensa neutralidade finge não enxergar e orienta a construção de uma justiça pluriversal, aberta às diferenças e resistente às universalizações que sustentam exclusões históricas.
Por isso, falar em combate ao racismo e ao machismo institucionais gera tanta tensão, pois a culpa saí de indivíduos “sem educação”, para responsabilizar as Instituições e o Estado. Combater o racismo institucional é falar de mudanças estruturais, é ameaçar privilégios históricos. Muito se fala em herança da escravidão, ressaltando a subalternização das pessoas negras e indígenas na sociedade brasileira, mas pouco se fala na herança escravista, do acúmulo patrimonial de quem descende dos colonizadores.
Após 137 anos, não nos cabe falar em culpa, mas em responsabilidade. E o Estado Brasileiro é sim responsável pelo maior crime histórico cometido contra a população negra: a escravidão e suas permanências. Tanto que em novembro de 2024, a União reconheceu esse fato. Como afirmou Jorge Messias, atual AGU, em cerimônia solene: “Venho agora, em nome do Estado brasileiro, realizar, como efetivamente realizo, pedido de desculpas pela escravização das pessoas negras, bem como de seus efeitos”.
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O pedido de desculpas não encerra a dívida, apenas inaugura a obrigação de agir. E é aqui que a Advocacia Pública assume papel central: nenhuma instituição possui tanto potencial de impacto quanto aquela que orienta juridicamente o Estado em todas as suas esferas.
No que se refere a ações efetivas, a edição da Portaria Normativa AGU nº 171, de 7 de abril de 2025, é um marco simbólico ao prever que 50% dos cargos de direção e chefia sejam ocupados por mulheres, garantindo 15% para mulheres negras. Com isso, pretende-se inaugurar uma política institucional que reconheça a desigualdade e enfrente, ainda que tardiamente, a perpetuação dos privilégios.
Os órgãos da Advocacia-Geral da União têm até o fim de 2025 para implementar mudanças. Algumas já foram parcialmente cumpridas: hoje, todas as Regionais da Procuradoria-Geral Federal são chefiadas por mulheres. Contudo, nenhuma delas é negra. As justificativas soam familiares: “não existem mulheres negras preparadas para assumir tais posições”, “elas não estão interessadas nesses cargos”, “não há mulheres negras em número suficiente”. Os mesmos argumentos foram usados em 2020, quando conquistamos os 30% de cotas raciais no Sistema OAB.
A ocupação de espaço por pessoas diversas, sobretudo mulheres negras, torna a atuação institucional mais eficiente, porque suas vivências, epistemologias ancestrais e olhares desde a encruzilhada trazem para dentro das Instituições a pluralidade que a democracia exige. Por isso afirmo: equidade é substância democrática. Quando uma advogada pública negra ou indígena assume um cargo de decisão, não se trata apenas de reparar a exclusão de ontem, mas de alterar as escolhas de hoje.
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O Brasil precisa se confrontar com sua história e com seu presente. A Advocacia Pública pode ser guardiã da repetição das violências raciais e de gênero ou arauto da transformação. Pode se esconder sob o mito da neutralidade e seguir alimentando pactos de privilégio ou atuar para que entre o ar novo da diversidade.
Na AGU temos um lema: Essencial à Justiça, fundamental à Nação, mas não há Justiça sem equidade, nem Nação sem reconhecer os contributos das tecnologias negras e indígenas que também a fundaram.

