O contencioso administrativo tributário é um mecanismo fundamental para a resolução de conflitos entre os fiscos e os contribuintes, sejam relacionados a erros no lançamento da exigência fiscal sejam relativos à interpretação da complexa legislação tributária.
A despeito do bom funcionamento dos tribunais administrativos, caso seja aprovado o PLP 108/2024, sem determinadas correções, entendemos que ocorrerá um prejudicial esvaziamento no contencioso administrativo tributário, contrariando princípios constitucionais, em verdadeiro retrocesso ao sistema tributário.
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Com o advento da Emenda Constitucional 132/2023, a Constituição foi alterada para trazer uma reforma no sistema tributário, especialmente com relação aos tributos incidentes sobre o consumo.
Após a alteração da Constituição, foi aprovado o PLP 68/2024 que, convertido na Lei Complementar 214/2025, instituiu: “o Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS); cria o Comitê Gestor do IBS e altera a legislação tributária”.
Diante da nova sistemática dos tributos sobre o consumo, que passaram a ter competência compartilhada entre os entes federados (municípios, estados/Distrito Federal, União), passou a ser necessário, também, a edição de normas para regulamentação do contencioso administrativo tributário. Essa árdua tarefa ficou a cargo do PLP 108, atualmente em trâmite no Congresso Nacional.
Ocorre que, dentre as críticas que temos quanto ao referido projeto de lei, nessa oportunidade abordaremos a previsão contida no artigo 92, § 3º, do PLP 108, que foi mantida no relatório apresentado pelo senador Eduardo Braga (MDB-AM) no último dia 9 (vide artigo 74, § único).
Mencionado dispositivo, em nosso entendimento, impede que às autoridades julgadoras interpretem a legislação tributária e afaste ilegalidades, ao destacar que: “Ressalvado o disposto neste artigo, fica vedado às autoridades julgadoras, no âmbito do processo administrativo tributário, afastar a aplicação ou deixar de observar a legislação tributária sob o fundamento de inconstitucionalidade ou ilegalidade”.
Isso significa dizer que o julgador administrativo não poderá afastar uma norma emanada pelo Poder Executivo, como Portaria ou Instrução Normativa que viole diretamente a lei, como o Código Tributário Nacional ou a LC 214/2025.
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Para ilustrar a questão, destacamos, com base no que ora defendemos, que: se uma Instrução Normativa prescrever que a defesa administrativa não suspende a exigibilidade do crédito tributário, o julgador administrativo não poderá declarar que tal disposição é ilegal, por ferir o artigo 151, inciso III, do CTN.
Quanto a este particular, esclarecemos que a nossa afirmativa não é no sentido de que o julgador administrativo deveria ter competência ampla para afastar uma norma geral e abstrata, como ocorre em uma sentença com efeitos declaratórios em matéria tributária, o que, de fato, compete apenas ao Judiciário.
A preocupação abordada neste texto é a de que tal dispositivo seja interpretado de modo a impedir que o julgador administrativo possa afastar ilegalidades perpetradas no caso concreto (auto de infração – norma individual e concreta), o que acontece nos tribunais administrativos atualmente.
Isso porque, em atendimento ao princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal), os tribunais administrativos devem e, via de regra, detêm competência para interpretação e aplicação da legislação tributária ao julgar autos de infração/processos administrativos.
Além disso, tais tribunais são formados por julgadores especializados na matéria tributária e, muitas vezes, são compostos de forma paritária (representantes dos contribuintes e dos fiscos), o que permite a prolação de decisões técnicas, justas e isonômicas, atendendo aos princípios da segurança jurídica e da moralidade administrativa (artigo 37 da Constituição).
No que cabe nesse breve texto, destacamos que o princípio da segurança jurídica (tributária) induz o Estado, a grosso modo, a adotar condutas que assegurem previsibilidade e confiança no sistema tributário, especialmente para afastar arbitrariedades porventura ocorridas no lançamento fiscal, fiscalização, entre outros.
Nesse aspecto, o julgador administrativo deve ter competência para afastar ilegalidades e interpretar a legislação tributária, evitando que o agente fiscal, muitas vezes por estar vinculado à legislação (artigo 142 do CTN), promova lançamentos ou tome atitudes que contrariem a legislação.
Por sua vez, o princípio da moralidade administrativa, para Celso Antônio Bandeira de Mello, implica: “(…) a Administração o dever de justificar seus atos, apontando-lhes os fundamentos de direito e de fato, assim como a correlação lógica entre os eventos e situações que deu por existentes e a providência tomada, nos casos em que este último aclaramento seja necessário para aferir-se a consonância da conduta administrativa com a lei que lhe serviu de arrimo” [1].
Nessa linha, como o contencioso administrativo configura um controle de legalidade e revisão do lançamento de ofício, assegurando e reafirmando a legalidade de seus fundamentos fáticos e jurídicos, é necessário que o julgador administrativo possa fazer esse controle de forma relativamente ampla, para afastar e corrigir ilegalidades no lançamento, inclusive, sendo o caso, promovendo o cancelamento deste.
Atualmente, tais princípios vêm sendo, ao menos em regra, atendidos. Exemplificativamente, destaca-se que tanto o Decreto 70.235/1972, que dispõe sobre o processo administrativo fiscal/tributário no âmbito federal quanto a Lei 13.457/2009 do estado de São Paulo, que rege o processo administrativo tributário paulista, não restringem a interpretação da legislação tributária, incluindo, mas não se limitando, sobre o conteúdo e aplicação de leis ordinárias, leis complementares e decretos, reconhecendo-se ilegalidades e, assim, possibilitando um contencioso administrativo justo e efetivo.
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Tem-se, assim, que a aprovação do referido projeto de lei complementar deve se atentar a determinadas disposições legais/constitucionais, em especial a tratada acima, com sensíveis ajustes para evitar interpretações equivocadas e inconstitucionais.
A manutenção dessa disposição legal, além de esbarrar em princípios constitucionais, falha como política tributária, pois poderá gerar prejuízos ao ordenamento jurídico e ao sistema tributário, ao impedir a resolução de muitas demandas administrativamente, aumentando sobremaneira a quantidade de processos no Judiciário, sendo prejudicial há um só tempo tanto para o fisco quanto para os contribuintes.
Neste cenário, o que se propõe é que tal disposição legal seja alterada/ajustada para evitar uma interpretação extensiva que inviabilize o julgador administrativo afastar e corrigir ilegalidades ocorridas nos lançamentos e demais atos administrativos pertinentes.
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Este texto é fruto das discussões ocorridas no Núcleo do Mestrado Profissional da FGV Direito SP, na linha de pesquisa “Questões Contemporâneas do Contencioso Tributário”, em relação ao projeto “Reforma do Processo e seus Impactos na Reforma Tributária”
[1] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Distrito Administrativo, 27ª edição. Editora Malheiros Editores, Página 112.