Olá, caro leitor!
Neste mês, a coluna volta seus olhos para uma questão que, sobre ter repercussões técnico-jurídica, é também – e sobretudo – um dilema socioeconômico do nosso tempo (especialmente nas periferias do sistema capitalista). Refiro-me à exclusão digital.
Não se trata de algo novo por aqui. Há um bom tempo, quando nos debruçamos sobre a questão das provas digitais e discutimos o uso de prints de aplicativos de mensagens instantâneas (Whatsapp e afins) como prova judicial, alguns leitores já nos provocavam, em privado, sobre o problema do “analfabetismo digital”. A um deles, referi caso que experenciei no exercício da minha jurisdição, na 1ª Vara do Trabalho de Taubaté: advogado bem-quisto e ilustrado, colega de infância da minha mãe – quando lhe atribuíram o apelido de “Filósofo” (e por aí se aquilata a sua erudição) – e pai de um grande amigo meu, deixou de advogar no início dos anos 2000 porque não se adaptou… ao PJe-JT. Mas o dito analfabetismo digital é apenas uma faceta daquela exclusão, de largo e profundo espectro.
Com efeito, se temos 11 milhões de analfabetos funcionais no Brasil (pessoas que, embora possam até assinar o nome, não tem aptidão para ler e escrever), são 170 milhões os que não tem acesso à internet no país (dados do IBGE de 2022). Vendo por esse ângulo, a digitalização/virtualização do processo, que deveria servir à ampliação do acesso à justiça e à ordem jurídica justa (CRFB, art. 5º, XXXV), não raro se torna um elemento de obstrução ou perturbação do próprio acesso. Em jargão médico, talvez pudéssemos dizer: um abscesso…
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Se é assim, o que esperar desse público – e o que se assegurar a ele – no contexto de um processo judicial digitalizado, em que partes e advogados cada vez mais se veem às voltas com as tais provas digitais?
Não tenho respostas prontas. Mas tenho reflexões a compartilhar com você, que me honra com a sua atenção e leitura.
Voilà.
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A exclusão digital, em sua essência, refere-se à desigualdade no acesso e na utilização das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Essa disparidade não se limita apenas à posse de equipamentos ou objetos tecnológicos (computadores, smartphones), como tampouco se refere meramente ao acesso à internet. Para além disso, alcança também – e sobretudo – a capacidade de uso e a chamada “literacia digital” (habilidade de navegar, compreender e utilizar as ferramentas tecnológicas).
Nessa ordem de ideias, a universalização do processo judicial eletrônico (PJe) e o avanço da digitalização de serviços judiciários, embora representem um enorme ganho em celeridade e eficiência, criaram um novo obstáculo ao acesso à justiça para uma parcela significativa da população. Noutras palavras, o Poder Judiciário, ao migrar majoritariamente para o ambiente virtual, pressupõe um cidadão digitalmente incluído; nada obstante, a realidade brasileira demonstra o oposto.
Há, com efeito, com grande variação regional e classista, dificuldades notáveis de participação de advogados, partes e testemunhas no universo dos processos digitais. Esse quadro mereceu inclusive considerações regulamentares específicas (veja-se, e.g., a Recomendação n. 101/2021 do CNJ), sendo certo que o panorama é agravado em um país de profunda exclusão digital como o Brasil, especialmente entre as ditas classes “D” e “E”. Nessas duas faixas, estima-se que apenas 48% das pessoas tenham adequado acesso à rede mundial de computadores). São inúmeros os atos a serem praticados: designações, redesignações, notificações etc. Houve um aumento descomunal de comunicações aos juízes e secretarias, por parte dos tribunais, dos advogados e do público em geral. Há pedidos de informações, exigências e uma infinidade de comunicações, reclamações nas ouvidorias e até cobranças pelas mídias sociais. A capacidade de resposta, por outro lado, não se incrementou. Ao contrário, estacionou (em razão de limitações orçamentárias) ou, a depender da unidade, até mesmo se reduziu (em razão, e.g., dos adoecimentos, que muitas vezes é silencioso, mas renitente).
A exclusão digital manifesta-se no Judiciário de diversas formas, como na dificuldade de protocolar petições, na incapacidade de acompanhar o andamento processual remotamente ou na falta de familiaridade com os sistemas de videoconferência para audiências. Muitos cidadãos, em especial idosos, assim como pessoas de baixa renda ou residentes em áreas remotas, dependem da infraestrutura e/ou da expertise de terceiros (advogados, defensores públicos ou postos de atendimento) para exercerem suas posições processuais jurídico-subjetivas (ônus, deveres, poderes, faculdades).
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A ausência de competência digital em sentido estrito pode levar à perda de prazos, à deficiência na produção de provas – especialmente se estivermos tratando de provas digitais – e, em última instância, à negação de tutela jurisdicional efetiva. A melhor doutrina, nesse particular, tem argumentado com o óbvio: a tecnologia não deve ser um fim em si mesmo, mas um meio para a realização do direito material. Ele aponta o risco de se criar uma justiça de duas velocidades: uma rápida, para os incluídos digitais, e uma morosa ou inacessível, para os excluídos digitais.
Em relação às provas digitais – a mais recente fronteira do direito probatório e um ponto de tensão com a exclusão digital em sua acepção mais estrita -, cabe ponderar que, se as provas digitais encerram dados armazenados, transmitidos ou criados por meios eletrônicos (mensagens de WhatsApp, e-mails, vídeos, registros de redes sociais, metadados etc.) e são utilizados para formar o convencimento do juiz, aqueles que não dominam minimamente as respectivas tecnologias estão em franca desvantagem desde a primeira formalização do litígio em juízo..Com efeito, o uso dessas provas exige não apenas a sua obtenção lícita e a sua integridade, mas também a capacidade técnica das partes de produzi-las e impugná-las. Essas competências obviamente faltam aos excluídos digitais, sejam eles partes, advogados ou terceiros.
A parte excluída digitalmente pode desconhecer a existência de um elemento probatório digital crucial ou não possuir a expertise para extraí-lo de forma técnica e validada, como, por exemplo, a extração de metadados que comprovem a autenticidade de uma imagem. A exclusão digital aqui se manifesta, pois, como uma exclusão probatória. A desigualdade material se transforma em desigualdade processual, pois a parte com maior recurso tecnológico e conhecimento digital terá uma vantagem desproporcional na instrução processual.
A jurisprudência brasileira tem evoluído no sentido de exigir critérios rígidos para a admissão de provas digitais, como a fé pública de notários ou o uso de ferramentas de preservação de evidências – notadamente quanto à cadeia de custódia (CPP, art. 158-A), como a ata notarial ou o espelhamento forense (“forensic copy”). No entanto, a exigência de recursos técnicos caros para a produção de provas digitais (como a contratação de peritos em informática forense) impõe um ônus financeiro que a parte excluída, geralmente hipossuficiente, não pode arcar. Não por outra razão, o juiz deve ter uma atitude ativa para garantir a paridade de armas probatória, utilizando-se, se necessário, de poderes instrutórios para determinar a produção da prova digital pela parte que tem a posse ou o melhor acesso a ela.
Em resumo e arremate, a exclusão digital é um desafio à isonomia processual e um risco concreto à justiça material no Brasil.
Mas o que fazer?
Correndo o risco de escrever platitudes, parece-me que o enfrentamento da exclusão digital no Judiciário exige uma política pública de inclusão digital judicial que não está claramente contemplada, até este momento, pelos próprios eixos do projeto Justiça 4.0 (CNJ). Emerge, na presente quadra, a necessidade de o Judiciário oferecer infraestrutura de apoio para o cidadão comum, como centros de inclusão digital em fóruns e tribunais. A política dos pontos de inclusão digital (PID), do Conselho Nacional de Justiça (Resolução nº. 508 de 22/06/2023), já caminha nessa direção. De outra parte, o Conselho Nacional de Justiça e os tribunais devem simplificar a linguagem e a usabilidade de seus sistemas eletrônicos (PJe, Balcão Virtual etc.), tornando-os cada vez mais acessíveis a pessoas com baixo letramento digital, em um esforço contínuo de design universal de serviços judiciais.
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A exclusão digital não é um problema periférico, mas um entrave estrutural ao efetivo Estado Democrático de Direito. O desafio de um Judiciário digitalizado é garantir que a celeridade não se sobreponha à justiça e que o acesso à tecnologia não se torne um novo privilégio processual, à maneira das antigas prerrogativas forenses medievais. Na sociedade 4.0, progresso sem acesso é retrocesso… E você continua a ser réu do seu juízo.
…E é isto, querido leitor. Gostou do tema e da abordagem? Gostaria de ler novos ensaios sobre esse assunto? Critique, sugira, proponha, elogie (por que não?)… Tudo pelo e-mail dunkel2015@gmail.com

