A Solução de Consulta Cosit 55, publicada pela Receita Federal em março deste ano, é um daqueles documentos que chamam a atenção já na primeira leitura – tanto pelo conteúdo quanto pelas possíveis implicações.
Uma segunda leitura, no entanto, se faz necessária para compreender melhor os fundamentos adotados e avaliar se não há algum equívoco na interpretação conferida à legislação.
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Em poucas páginas, a Receita Federal consegue reescrever o art. 28, § 9º da Lei 8.212/1991, afrontar a reforma trabalhista, varrer para debaixo do tapete a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ignorar orientações da própria Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e, de lambuja, proclamar que qualquer pagamento extraordinário só escapa da contribuição previdenciária se portar um salvo-conduto legislativo em neon piscante.
O caso concreto analisado pela Receita é a típica história de sucesso corporativo: novos investidores chegaram, o caixa engordou e a sociedade decidiu brindar alguns talentos com um bônus único, extraordinário, sem promessa prévia e sem reiteração futura. Nada mais “ganho eventual” do que isso.
Não para a Receita Federal, que decretou que a verba só seria considerada eventual — e, portanto, isenta — se alguma lei carimbasse, com tinta vermelha, três palavras: “não é salário”. Como não havia o tal carimbo, a Receita Federal concluiu que aquele ganho eventual teria natureza salarial e deveria ser tributado.
A primeira vítima desse raciocínio criativo é a própria gramática. O art. 28, § 9º, alínea “e”, item 7, da Lei 8.212 é cristalino ao separar “ganhos eventuais” dos “abonos expressamente desvinculados do salário por força de lei”. Mesmo uma leitura atenta, ainda que não especializada, revela que a exigência de “desvinculação expressa” diz respeito apenas aos abonos.
Já os ganhos eventuais gozam de isenção automática: basta que sejam, ora vejam, eventuais. A Receita, porém, de certa forma ignorou a lei e enxergou uma conjunção “e” implícita, capaz de contagiar a primeira expressão com a condição imposta à segunda — uma leitura possivelmente criativa, mas que não encontra respaldo na gramática ou na hermenêutica jurídica.
Não satisfeita, a Receita Federal decidiu promover outra interpretação conceitual que deixaria perplexo o mais experiente dos lógicos. Ao buscar exemplificar o que seriam “ganhos eventuais” – verbas que, por definição elementar, caracterizam-se pela ausência de habitualidade –, invocou precisamente os “prêmios” já disciplinados pela reforma trabalhista.
O “detalhe” é que o artigo 457, §2º, da CLT estabelece que tais prêmios não integram a remuneração “ainda que habituais”. Ou seja, a autoridade fiscal escolheu, para ilustrar pagamentos eventuais, justamente uma categoria de verba que a lei isenta expressamente mesmo quando paga habitualmente.
O enredo ganha ainda mais contornos controversos ao afirmar que um diretor estatutário não poderia receber prêmio isento de contribuições previdenciárias. Ora, o art. 28 da Lei 8.212 define o salário-de-contribuição para todos os segurados e, no § 9º, lista as verbas que ficam fora da base de cálculo — sem que haja qualquer restrição de pagamento de prêmios aos contribuintes individuais.
Se o legislador quisesse tributar diretores estatuários e desonerar apenas celetistas, bastaria incluir tal disposição no texto de lei. Mas não há qualquer restrição legal. A fúria arrecadadora, no entanto, introduziu uma distinção invisível e decidiu aplicá-la sem maiores problemas.
Ainda, a SC 55/2025 tentou buscar amparo em precedente que, como descobriremos, revela-se conceitualmente frágil e pouco sustentável: a SC Cosit 126/2014 e o tratamento dado ao prêmio-assiduidade. O problema é que o mundo jurídico não parou em 2014.
Enquanto a Cosit 126/2014 hibernava em seu casulo interpretativo, o STJ ocupou-se de examinar a questão com a seriedade merecida e trouxe, como resultado, a pacificação do entendimento de que o abono-assiduidade possui natureza indenizatória, afastando-se, portanto, da incidência tributária. O STJ não perguntou se havia lei específica desvinculando a verba; simplesmente analisou sua essência e concluiu o óbvio: não é salário quem não tem cara de salário.
Mas o equívoco não termina aí. A própria PGFN incluiu o abono-assiduidade em sua lista de temas com dispensa de contestação e recurso. Traduzindo para o português claro: a PGFN reconheceu que verbas desta natureza não são salariais.
Estamos, portanto, diante de um fenômeno: dois órgãos do Estado em dimensões interpretativas paralelas da mesma realidade jurídica. De um lado, a PGFN reconheceu que a conversão em dinheiro (indenização) do abono-assiduidade tem natureza não salarial e indenizatório, enquanto, do outro lado, a Receita Federal ainda sustentando que a natureza salarial de pagamentos de premiação relacionados à assiduidade, sem se atentar àa jurisprudência pacífica sobre o tema.
E todo o entendimento exarado perde ainda mais força quando confrontado com o Tema 20 da Repercussão Geral do STF, que estabeleceu a incidência de contribuições apenas sobre “ganhos habituais”. A lógica aristotélica sugeriria que ganhos eventuais, sendo o oposto de habituais, estariam fora do alcance tributário. Mas tal lógica, como descobrimos, pode não ser aplicada pela Receita Federal, se o pagamento eventual não estiver expressamente previsto em lei.
As consequências práticas dessa manobra interpretativa são lamentáveis. Empresas que ousarem reconhecer o mérito excepcional de seus colaboradores, especialmente contribuintes individuais, através de pagamentos extraordinários serão punidas com a sanha arrecadatória. O Judiciário, já abarrotado, receberá nova leva de processos contestando autuações baseadas em interpretação que contraria não apenas a gramática e a lei, mas também o bom senso e a jurisprudência consolidada.
Mais preocupante ainda é o precedente que se estabelece. Se uma Solução de Consulta pode atribuir novos sentidos a conectivos, ignorar reformas legislativas inteiras e contradizer o próprio órgão de representação judicial da Fazenda, o que mais seria possível?
A ironia suprema reside no fato de que todo esse malabarismo interpretativo ocorre em nome da arrecadação, mas acaba gerando exatamente o oposto: aumento de custos, desestimulando práticas empresariais legítimas, fomentando a litigiosidade e, no final das contas, desperdiçando recursos públicos em batalhas judiciais fadadas ao fracasso.
Assim, a Receita Federal, na ânsia de não deixar escapar nenhum centavo, acaba gerando gastos em processos que inevitavelmente perderá quando confrontada com a realidade dos tribunais superiores.
O que presenciamos na SC Cosit 55/2025 é a demonstração cabal de que, em muitos casos, as palavras podem significar o que a autoridade fiscal desejar que signifiquem, as leis podem dizer o que convém que digam, e a jurisprudência pacífica pode existir apenas como ornamento a ser admirado de longe, sem ser aplicado.
Enquanto isso, no mundo real – esse lugar incômodo onde vigora o Estado de Direito –, contribuintes continuarão perplexos diante de surpresas da administração tributária e seguirão buscando o Judiciário para restabelecer o óbvio: que eventual é eventual e que nem toda criatividade interpretativa merece prosperar, especialmente quando afronta simultaneamente a gramática, a lei, a jurisprudência e o senso comum.
Talvez o maior mérito da SC 55/2025 seja servir de exemplo de como complicar o simples. Um lembrete perpétuo de que, na eterna tensão entre o poder de tributar e os limites desse poder, há sempre a possibilidade de extrapolação de limites interpretativos.
Ao final, resta a certeza de que a SC Cosit 55/2025 ocupará lugar de destaque no panteão das interpretações administrativas criativas – não como exemplo a ser seguido, mas como advertência sobre os perigos de subordinar a lei à conveniência arrecadatória, com o afastamento de alguns precedentes e algumas regras gramaticais. Pequenos detalhes, quando o objetivo é a nobre tributação do contribuinte.