A singularidade da inteligência artificial enseja a necessidade de reorientação da regulação estatal para sua governança. Neste cenário, a capacidade de coordenação e cooperação institucional e entre partes interessadas é central para a construção de um arcabouço jurídico-regulatório robusto e adaptável, capaz de lidar com as particularidades da nova tecnologia.
Estes elementos – cooperação, coordenação e adaptabilidade – estão presentes nos modelos de governança e políticas setoriais adotados por diferentes jurisdições, como o Reino Unido, Singapura, União Europeia, Israel e China. Ressalvadas suas particularidades, todos têm em comum a criação de sistemas que facilitam a interação e coordenação entre diferentes partes interessadas para garantir o aprimoramento constante de normas, padrões e orientações aplicáveis à IA.
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Mais do que a regulação da tecnologia em sentido estrito (entendida como a criação de marcos legais e mecanismos de enforcement baseados em agências especializadas para fiscalização e aplicação de sanções), estes modelos visam à criação de sistemas de governança que permitem a introdução segura da inovação tecnológica na sociedade por meios que vão além das formas tradicionais de regulação, considerando, igualmente, objetivos de políticas setoriais relacionadas à IA.
No Brasil, as discussões sobre a regulação da IA estão concentradas no PL 2338/2023, que, com inspiração na legislação comunitária europeia, propõe conceitualmente a criação de um sistema com tais características.
Especificamente, o PL 2338 estabelece o denominado Sistema Nacional de Regulação e Governança da Inteligência Artificial (SIA), integrado pela ANPD, coordenadora do SIA e autoridade competente para fiscalização do futuro texto legal; autoridades setoriais (não especificadas); o Conselho Permanente de Cooperação Regulatória de Inteligência Artificial (CRIA); e o Comitê de Especialistas e Cientistas de IA (CECIA). Não obstante, o artigo 45, §2º aponta que os órgãos e entidades que comporão o SIA serão designados por meio de ato do Poder Executivo Federal.
Porém, o desenho institucional proposto pelo PL 2338 não é suficientemente claro a respeito do papel e das atribuições de cada um destes órgãos e pode resultar em sobreposições de competências, além de ineficiências e gargalos na interação entre diferentes partes interessadas no exercício de funções de governança e regulação da IA no Brasil.
A redação atualmente em discussão prevê que o SIA será um órgão de coordenação e cooperação, cujas funções são “valorizar e reforçar as competências regulatória, sancionatória e normativa das autoridades setoriais em harmonia com as competências correlatas gerais da autoridade competente […] e “buscar a harmonização e colaboração com órgãos reguladores de temas transversais”, conforme artigo 45, §3º do PL 2338.
Conforme proposto, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD)
atuaria como coordenadora do SIA e como autoridade competente para fiscalização do cumprimento das obrigações previstas no PL 2338. Para tanto, detém competências fiscalizatória (que pode ser exercida em conjunto com outras agências ou autoridades), sancionatória e normativa (gerais e residual, para atividades não sujeitas a regulador específico), além de funções de representação institucional, e de expedição de orientações sobre melhores práticas.
Às autoridades setoriais competiria, em síntese, o exercício de suas respectivas competências regulatórias “para desenvolvimento, implementação e uso de sistemas de inteligência artificial”, a expedição de normas específicas para aplicação da IA, incluindo aspectos relacionados a atividades de alto risco, incentivo a adoção de padrões e melhores práticas dentro de sua esfera de competência, a supervisão das medidas de governança para cada aplicação ou uso de sistemas de IA, assim como incentivo a boas práticas, autorregulação e a harmonização com a legislação nacional e normas internacionais.
Por sua vez, o CRIA, também coordenado pela ANPD, terá como atribuição “a produção de diretrizes e será fórum permanente de colaboração, inclusive por meio de acordos de cooperação técnica, com as autoridades setoriais e com a sociedade civil, a fim de harmonizar e facilitar o exercício das atribuições da autoridade competente”, competindo-lhe sugerir ações a serem realizadas pelo SIA, elaborar estudos, realizar debates públicos e disseminar o conhecimento sobre IA. Sua composição ainda é indefinida, contudo.
O CECIA tem como objetivo “orientar e supervisionar técnica e cientificamente o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial de forma responsável, nos termos definidos por regulamento”.
Este desenho institucional pode resultar em incertezas sobre as atribuições institucionais e na criação de um conjunto intricado de normas e orientações editadas pelos diferentes órgãos que integram o SIA, em prejuízo à coordenação e cooperação institucional necessária para a governança adequada da IA no Brasil.
Em primeiro lugar, as competências normativas da ANPD e das autoridades setoriais são concorrentes. Isto é, a ANPD poderá editar normas de aplicação geral, que deverão ser consideradas pelas autoridades setoriais quando da elaboração de suas próprias normas específicas dentro de suas respectivas esferas de competência.
Ao final, os agentes econômicos sujeitos à regulação setorial podem ser obrigados ao cumprimento simultâneo de normas expedidas pela ANPD e pelo seu respectivo regulador setorial.
De fato, é possível argumentar que tais questões seriam solucionadas no âmbito do SIA, com a eliminação da duplicidade de normas aplicáveis, motivo pelo qual as sobreposições consistiriam em um falso problema. No entanto, isso significa relegar à fase de regulamentação infralegal a delimitação das competências normativas de cada órgão, em prejuízo à segurança jurídica, à articulação eficaz entre os órgãos públicos, e ao próprio desenvolvimento tecnológico nacional.
Ainda, o PL 2338 atualmente não define quais são as autoridades setoriais (presumindo-se que podem ser as agências reguladoras setoriais), o que é determinante para a definição da competência geral e residual da ANPD.
Também carece de aprimoramento a redundância de funções institucionais do SIA e do CRIA. Ambos são criados sob coordenação da ANPD, com o objetivo de funcionarem como órgãos de cooperação técnica e colaboração permanente para fins de harmonização regulatória. Entretanto, não há clareza sobre as atribuições reais destes órgãos. Afinal, comandos legais sobre os objetivos e competências de “valorização”, “reforço” ou “facilitação” do exercício de competências por parte de outros órgãos não oferecem orientação concreta sobre seus escopos de atuação.
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Nota-se também que em diferentes dispositivos menciona-se a possibilidade de que os integrantes do SIA firmem acordos de cooperação técnica entre si e com outras autoridades. Isso é um contrassenso à concepção de um sistema de governança para a IA, pois tal cooperação entre seus integrantes deveria ser um pressuposto de seu funcionamento, que não deveria depender da necessidade de celebração de novos acordos futuramente.
Com efeito, em linha com a experiência internacional, a criação de um sistema que viabilize a interação e cooperação entre diferentes partes interessadas, incluindo desde representantes do setor privado, academia, institutos de pesquisa e órgãos públicos é fundamental para a governança da IA. Porém, tal como atualmente proposto, o desenho institucional do PL 2338 carece de maior refinamento e de definições precisas das atribuições de cada órgão público envolvido, sem o adiamento de determinadas discussões para a fase regulamentar.
Reino Unido. Policy Paper: A pro-innovation approach to AI regulation. Agosto de 2023. Disponível em: https://www.gov.uk/government/publications/ai-regulation-a-pro-innovation-approach/white-paper
Singapura. NAIS 2.0. Singapore National Artificial Intelligence: AI for the Public Good for Singapore and the World. Dezembro de 2023. Disponível em: https://file.go.gov.sg/nais2023.pdf
União Europeia. European Union Artificial Intelligence Act.
Israel. Israel’s Policy on Artificial Intelligence Regulation and Ethics. Dezembro de 2023. Disponível em: https://www.gov.il/en/pages/ai_2023
China. Navigating China’s regulatory approach to generative artificial intelligence and large language models. Janeiro de 2025. Disponível em: https://doi.org/10.1017/cfl.2024.4