O aprimoramento da governança das entidades reguladoras infranacionais (ERIs) deixou de ser uma pauta aspiracional para se tornar um requisito de segurança jurídica em saneamento básico. A Norma de Referência 4/2024 da ANA, dedicada justamente à definição de padrões mínimos de governança e boas práticas regulatórias, inaugurou um novo patamar de exigência institucional.
O movimento já é irreversível: investidores, financiadores e concessionários passaram a olhar atentamente para a estabilidade decisória, previsibilidade procedimental, transparência e accountability dos reguladores.
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Ocorre que o prazo de adaptação da NR se encerrará somente em janeiro de 2026, o que faz com que ainda não seja possível perceber uma melhoria sistêmica no ambiente regulado. É nesse intervalo — entre a publicação da NR e a janela de comprovação formal — que os Tribunais de Contas podem (e devem) atuar como indutores de qualidade regulatória, ajudando a transformar suas intervenções em melhorias efetivas, e tais melhorias em uma nova cultura institucional.
O panorama é conhecido por quem atua com projetos no setor: como o boom dos investimentos em serviços de água e esgoto ocorreu mais recentemente, a sua regulação ainda não alcançou um melhor estágio de maturidade.
Além disso – e aqui talvez esteja a maior preocupação – a existência de muitas concessões isoladas, não inseridas em projetos regionalizados, submete parte expressiva desses investimentos a agências municipais que podem exibir estruturas mais incipientes e menores níveis de institucionalidade.
Ocorre que a regulação não é um “detalhe contratual” e sim um ativo determinante do custo de capital. Ao investidor importa a capacidade prática do regulador de produzir decisões motivadas, tempestivas, tecnicamente robustas e produzidas sob a orientação do devido processo legal administrativo — atributos diretamente correlacionados à governança dessas entidades.
Nesse ponto, o histórico de atuação dos Tribunais de Contas ilustra como a intervenção do controle externo pode ser muito bem-vinda para abreviar a curva de otimização da governança regulatória.
Em âmbito federal, o TCU há muito consolidou jurisprudência que reconhece sua competência para o exercício do “controle de segunda ordem”, que não deve invadir a competência discricionária das agências reguladoras, mas ratifica o exercício do controle externo sobre os atributos legais e formais dos atos regulatórios editados.
O Acórdão 1166/2019-Plenário é um exemplo, ao estabelecer que “A competência do TCU para fiscalizar as atividades-fim das agências reguladoras caracteriza-se como controle de segunda ordem, cabendo respeitar a discricionariedade das agências quanto à escolha da estratégia e das metodologias utilizadas para o alcance dos objetivos delineados. Isso não impede, todavia, que o TCU determine a adoção de medidas corretivas a ato praticado na esfera discricionária dessas entidades, quando houver violação ao ordenamento jurídico, do qual fazem parte os princípios da finalidade, da economicidade e da modicidade tarifária na prestação dos serviços públicos”.
A partir desse racional, mostra-se emblemático o Acórdão 2261/2011-Plenário, por meio do qual o TCU realizou auditoria operacional para avaliar a governança e a gestão regulatória das agências reguladoras federais, com ênfase na sua estrutura administrativa, processos decisórios e mecanismos de controle interno.
O TCU à época constatou fragilidades como a ausência de planejamento estratégico integrado, lacunas em políticas de gestão de pessoal e insuficiência de indicadores de desempenho para aferir a efetividade regulatória. Também destacou a necessidade de reforço da autonomia técnica e administrativa, prevenindo ingerências políticas que possam comprometer a estabilidade regulatória. Enfim, nada muito diferente da realidade atual de muitas ERIs.
No Rio de Janeiro, o TCE-RJ aprovou o Acórdão em 8 de março de 2023 nos autos do Processo 100.805-1/22, julgando Auditoria Governamental Extraordinária em face da Agenersa. O caso é exemplar por duas razões.
Primeiro, porque o tribunal não se limitou a diagnósticos: determinou-se a elaboração de um plano de ação com prazos e responsáveis, exigiu-se a revisão de fluxos de transparência (SEI aberto como regra, sigilo como exceção), demandou-se política de gestão de riscos e planejamento estratégico integrado, reforçou-se a exigência de AIR prévia a atos normativos e recomendou-se salvaguardas de autonomia à Ouvidoria.
Segundo, porque conectou governança a resultados: o voto condutor denota que robustez institucional da agência é condição para fiscalizar adequadamente a universalização dos serviços e suportar a agenda intensiva de concessões no Estado. Em termos práticos, é o controle externo dizendo que governança não é ornamento; é infraestrutura regulatória que reduz litigiosidade, melhora a qualidade da fiscalização e diminui incertezas contratuais.
Tais precedentes convergem com a teleologia da NR 4/2024: autonomia decisória com mandatos fixos, agenda regulatória com AIR e análise ex post de resultados, instâncias de participação social funcionais (consultas e audiências com prazos, relatórios e devolutivas públicas), transparência ativa, regras de gestão de conflitos de interesse e integridade, e capacidade técnico-organizacional (carreiras, capacitação, TI e dados).
São salvaguardas que diminuem o risco de “surpresas” regulatórias, evitam politização em temas sensíveis (reajustes, revisões, reequilíbrios), e permitem que novos entrantes precifiquem melhor os riscos a que serão expostos — com impacto direto sobre tarifa, cronograma de investimentos e cobertura de serviço.
Por isso, enquanto a ANA não abre a etapa formal de comprovação do atendimento à NR 4, faz sentido um roteiro mínimo para Poderes Concedentes e ERIs: (i) autoavaliação estruturada de aderência à NR 4, com evidências documentais e lacunas mapeadas; (ii) plano de ação com responsáveis, prazos e métricas de saída (KPI de governança), priorizando o que afeta decisões no curto prazo (por exemplo, ritos de audiência/consulta, AIR e racionalidade para o processo regulatório, com resguardo ao pleno exercício da ampla defesa e do contraditório); (iii) revisão dos instrumentos de transparência (SEI e portal) para acompanhamento transparente e facilitado do funcionamento e, em especial, das decisões das ERIs; (iv) reforço da independência funcional: mandatos, quarentenas, interinidades e regras de impedimento; (v) institucionalização de ciclos de comunicação com usuários e regulados, inclusive com relatórios de análise das contribuições nas consultas, em linguagem clara. São medidas de baixo custo relativo e alto retorno reputacional, muitas já exigidas pelos próprios Tribunais de Contas nos casos acima.
Há também um ângulo federativo relevante nesse tema. Municípios pequenos — muitas vezes com regulação municipal de baixa institucionalidade — devem se atentar para soluções cooperativas: delegação a ERIs estaduais/intermunicipais, convênios de cooperação e participação em consórcios com capacidade regulatória já instalada. O objetivo não é “ter uma agência qualquer”, mas contar com um processo que gere decisões previsíveis, técnicas e transparentes.
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A NR 4/2024 forneceu o mapa. E a importância do tema não permite que se admita, hoje, a instalação da inércia. Enquanto a ANA não fiscaliza o seu cumprimento, os Tribunais de Contas são atores aptos a desempenhar papel essencial na aceleração do aperfeiçoamento institucional das ERIs.
Quem sair na frente colherá os prêmios clássicos de um ambiente regulatório confiável — menor custo de capital, maior competição em licitações e menos incerteza judicial. E o usuário, que é a razão de ser do sistema, perceberá a diferença onde importa: qualidade, expansão de serviços e preço justo, sob a gestão de um regulador capaz, estável e transparente.