A inteligência artificial deixou de ser promessa distante para se tornar parte concreta do cotidiano jurídico brasileiro. A mais recente pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que quase metade dos tribunais já utiliza ferramentas de IA generativa em suas operações (45,8%), sobretudo em tarefas textuais como geração e revisão de documentos, sumarização e apoio na redação (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2025, p. 24-25).
O dado é significativo: revela não apenas a incorporação de uma tecnologia emergente em um ambiente marcado pela formalidade e pelo rigor procedimental, mas também a percepção de que a eficiência processual e a redução da sobrecarga de trabalho não podem prescindir da inovação tecnológica.
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Entre os tribunais que ainda não adotaram essas ferramentas, mais de 80% declararam intenção de fazê-lo, sinalizando que a tendência se tornará, em breve, maioria (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2025, p. 25). Além disso, levantamento também recente da OAB-SP, Trybe, Jusbrasil e ITS Rio revela que 55,1% dos profissionais de Direito aplicam IA generativa em suas atividades diárias, majoritariamente em análise de documentos, produção de peças jurídicas e pesquisas jurisprudenciais e doutrinárias, com variação conforme perfil (autônomos, escritórios privados ou setor público) (OAB-SP et al., 2025).
Esse movimento ocorre em um contexto de alta judicialização, no qual milhões de processos sobrecarregam tribunais e profissionais do Direito diante de demandas cada vez mais complexas. E não apenas os processos em curso entram nessa conta. Como já apontavam Cappelletti e Garth (1988, p. 4), o acesso efetivo à justiça é “o requisito fundamental — o mais básico dos direitos humanos” (especialmente porque garante o acesso a todos os outros direitos), mas sua realização frequentemente é limitada por custos de tempo e energia que inviabilizam a efetividade da tutela.
O mero risco do processo é suficiente para iniciar trabalhos relacionados de consultoria e due diligence que são igualmente relevantes, complexos e demorados em seu desenvolvimento. É nesse cenário que a IA assume função estratégica: liberar operadores do Direito de tarefas repetitivas, permitir análise em grande escala de dados jurídicos, apoiar decisões que exigem consistência e agilidade e tornar mais palpável e compreensível o conteúdo jurídico para pessoas leigas.
Embora o horizonte de desenvolvimento de produtos com IA seja ainda mais promissor, soluções especializadas já demonstram o potencial de integração entre bases jurídicas oficiais e modelos de linguagem, permitindo que advogados conduzam pesquisas mais rápidas, elaborem peças com maior rigor e ampliem o alcance de sua atuação.
Nesse sentido, as iniciativas que não pretendem substituir o raciocínio jurídico, mas criar condições para que a advocacia seja mais analítica e estratégica, tendem a ser cada vez mais bem-sucedidas (ainda que se deva evitar, como alerta parte da crítica a Susskind (2019), um otimismo excessivamente tecnodeterminista).
Esse avanço, ainda assim, traz consigo dilemas. A própria pesquisa do CNJ indica que mais da metade dos órgãos que usam IA generativa o fazem por meio de contas pessoais, sem coordenação institucional ou diretrizes claras (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2025, p. 26-27). O mesmo pode ser suposto sobre advogados em escritórios e departamentos jurídicos, onde muitas vezes a adoção ocorre de forma difusa e individualizada.
Isso levanta preocupações éticas e jurídicas centrais: a privacidade dos dados judiciais, o risco de vieses algorítmicos e a ausência de políticas internas consolidadas. Mittelstadt et al. (2016) já advertiam que a ética dos algoritmos não pode se restringir à identificação de riscos abstratos, mas exige mecanismos práticos de governança capazes de reduzir lacunas entre design e uso.
Ainda que o Marco Legal da IA em discussão no Brasil (PL 2338/2023) e normas recentes do próprio CNJ (Resolução CNJ 615/2025 e Ato Normativo 0000563-47.2025.2.00.0000, que atualiza a Resolução 332/2020) estabeleçam balizas para uso responsável, a distância entre discurso normativo e prática cotidiana continua sendo um dos grandes desafios para a consolidação segura da tecnologia.
Essa tensão — entre a necessidade de inovação e a urgência de salvaguardas éticas — talvez seja o traço mais característico do momento atual. Se de um lado a IA oferece ganhos de eficiência, democratiza o acesso à informação jurídica e amplia a transparência; de outro, impõe a advogados e magistrados a tarefa de desenvolver novas competências.
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O profissional do Direito que atua nesse cenário precisa dominar ferramentas digitais, interpretar criticamente resultados de algoritmos e cultivar uma ética digital que complemente sua formação jurídica tradicional. Floridi e Cowls (2019) defendem princípios como beneficência, justiça e explicabilidade, mas parte da literatura alerta para o risco de que tais diretrizes permaneçam em nível retórico (ethics washing) se não forem acompanhadas de processos auditáveis, métricas de desempenho e responsabilização institucional.
A adoção da inteligência artificial no Direito brasileiro não deve ser vista como mera modernização tecnológica, mas como transformação cultural profunda. O Direito, historicamente ancorado em repetições e precedentes, pode se reconfigurar em torno da análise de dados, da predição e da personalização de soluções. O futuro da prática jurídica no Brasil dependerá menos da resistência às mudanças e mais da capacidade de advogados, tribunais e instituições de conduzir essa transição com responsabilidade, rigor técnico e consciência de seu impacto social.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Ato Normativo nº 0000563-47.2025.2.00.0000. Atualiza a Resolução CNJ n. 332/2020, que dispõe sobre a ética, a transparência e a governança na produção e no uso de Inteligência Artificial no Poder Judiciário. Brasília, DF, 18 fev. 2025.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 615, de 11 de março de 2025. Institui o Comitê Nacional de Inteligência Artificial do Judiciário do Conselho Nacional de Justiça. Brasília, DF, 11 mar. 2025.
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 2.338, de 2023. Dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial. Brasília, DF: Senado Federal, 2023.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Pesquisa Inteligência Artificial no Judiciário 2024: resumo executivo. Brasília, DF: CNJ; PNUD, 2025.
FLORIDI, Luciano; COWLS, Josh. A Unified Framework of Five Principles for AI in Society. Harvard Data Science Review, v. 1, n. 1, 2019. DOI: 10.1162/99608f92.8cd550d1.
MITTELSTADT, Brent D. et al. The ethics of algorithms: Mapping the debate. Big Data & Society, v. 3, n. 2, p. 1-21, 2016. DOI: 10.1177/2053951716679679.
OAB-SP; Trybe; Jusbrasil; ITS. Impacto da IA generativa no Direito: Panorama sobre adoção e percepções. 1o relatório setorial sobre a adoção e as percepções da IA Generativa no Direito, mapeando oportunidades e desafios dessa nova realidade. São Paulo: 2025.
SUSSKIND, Richard. Tomorrow’s Lawyers: An Introduction to Your Future. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2019.

