“Graças à linguagem jurídica, a contingência do estado de coisas políticas se transforma em necessidade e a cultura se transforma em natureza.”[1]
A experiência de ler um texto jurídico que expõe as experiências humanas como realmente são — e não como deveriam ou poderiam ser — deve sempre ser valorizada, especialmente se você estuda Direito Administrativo no Brasil.
Embora exista um esforço sério de parte dos publicistas brasileiros para aproximar o direito público ensinado nas universidades da realidade[2], não me sinto confortável para afirmar que ele é, essencialmente, enxergado como algo que não foi criado para melhorar concretamente a vida das pessoas.
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Como confidenciou certa vez — e em tom de desabafo — um professor em aula da pós-graduação da PUC-SP, é assustador, por exemplo, que temas como “bens públicos” continuem a ser explorados em salas de aula sem que se entre no contexto dos debates o fato de comunidades inteiras habitarem espaços de domínio do Estado e que o problema de acesso à habitação não seja um fator relevante na compreensão do problema.
O texto que serve de mote para a elaboração deste artigo é de 1982, de autoria do professor francês Jacques Caillose[3], e trata das questões ideológicas e políticas do Direito Administrativo, em tempos de mudança.
O Direito Administrativo, para Caillose, nunca se resumiu à condição de instrumento para pensar a relação entre o Estado e a sociedade, dentro de uma perspectiva lógico-jurídica-formal. Esse seria o tipo de “verdade” deliberadamente ocultada, para não deixar evidente a relação que há entre Direito e Política.
Para ilustrar, o autor lembra que o Direito Administrativo, desde sua origem, sempre pôde ser visto como objeto de estratégias políticas. A cronologia dos fatos revela, por exemplo, que embora a sua gênese seja associada à construção do Estado de Direito e da consolidação do princípio da separação dos poderes, que tem por um de seus pilares o princípio da legalidade, a única parte efetivamente verdadeira dessa história é a de que a função do princípio da legalidade seria mais ideológica e política do que prática.
Na França revolucionária, a ação da Administração Pública era definida essencialmente por padrões de comportamentos criados pela jurisprudência do órgão do contencioso administrativo — cuja estrutura curiosamente remonta ao ancien régime — e sistematizados por obra da doutrina, e não por leis que prescreveriam a vontade popular.
A visão de que a Administração Pública estaria sujeita apenas à lei, além de artificial, trazia consigo uma mensagem política subjacente, mas muito clara: a sociedade e o Estado são coisas distintas e não cabe ao poder público se envolver em temas do mercado. E esse movimento, com diferentes conotações, se repetiu ao longo da história.
Juntamente com o Direito Administrativo, surgiu a “ciência” do Direito Administrativo que, como tal, seguindo a tendência do século 19, teria um método e um objeto a ser extraído da essência das relações Estado/sociedade e que poderia ser sintetizada, a depender das preferências do estudioso, nas noções de serviço público, puissance publique ou de regime jurídico-administrativo.
O problema é que o objeto dessa nova ciência não estaria na natureza das coisas, mas da vontade de quem o identifica, e essa vontade, no fundo, confundir-se-ia com uma visão reprimida de Estado. Haveria, portanto, na criação de categorias abstratas para compreender essa relação entre o poder público e a sociedade — tais como serviços públicos, regime jurídico-administrativo, contratos administrativos — um espaço de manipulação, diretamente associado ao fato de o objeto do direito administrativo corresponder ao que o “cientista” queira que ele seja.
O Direito Administrativo corresponderia, na visão de Caillose, a um imaginário coletivo de Estado, que daria espaço para juristas e aplicadores do direito manipularem a sociedade organizada para fazer prevalecer, dentro de quadros muito próprios, a sua visão de poder público e o que esperam e desejam que seja a função dos poderes constituídos.
Sendo assim, em tempos de mudança, o Direito Administrativo assumiria feição contraditória. Isso porque, por mais que seja natural haver um alinhamento epistemológico do Direito Administrativo à forma positivista de pensar o Direito, curiosamente suas categorias serviriam, em muitos casos, de obstáculo para a implantação de medidas impostas ou autorizadas pelo direito posto. A ironia residiria exatamente no fato de essa resistência se esconder por trás de categorias abstratas e científicas, que camuflariam o voluntarismo e o subjetivismo que motivam uma tomada de decisão.
No último dia 24 de novembro, o ministro Flávio Dino, imbuído de um genuíno espírito humano e público, determinou monocraticamente que o município de São Paulo restabelecesse a “comercialização e a cobrança de serviços funerários, cemiteriais e de cremação, tendo como teto os valores praticados imediatamente antes das concessões”, com o objetivo de “evitar danos irreparáveis ou de difícil reparação em desfavor das famílias paulistanas, em face de um serviço público aparentemente em desacordo com direitos fundamentais e com valores morais básicos”.
Não se ignora os inúmeros problemas retratados na imprensa sobre a prestação do serviço de cemitério, mas este artigo se atentará especificamente aos fundamentos jurídicos utilizados na decisão acima relatada. De acordo com o ministro, a exploração do serviço público em questão deve se conformar aos parâmetros constitucionais do seu “regime jurídico”, especialmente pela necessidade de respeitar o direito dos usuários, a política tarifária e a obrigação de manter o serviço público adequado.
Além disso, a transferência da gestão do serviço público à iniciativa privada não eximiria a Administração Pública de seguir os princípios constitucionais da moralidade e da eficiência.
Os princípios jurídicos em questão, o regime jurídico próprio do serviço público, aliado aos relatos jornalísticos — muito graves e tristes, efetivamente — seriam, portanto, responsáveis por autorizar a implantação das medidas anunciadas, ao passo que a privatização de serviços funerários não pode afetar a “obrigatoriedade de manutenção de serviço público adequado e plenamente acessível às famílias”.
A concessão de um serviço público não é um ato impensado. A decisão de transferir a gestão de uma utilidade à iniciativa privada, nesse caso, foi precedida de autorização legislativa (Lei Municipal 17.180/19), estruturação de um projeto debatido com a sociedade e com os órgãos de controle, e que tinha um objetivo muito claro: resolver o problema na prestação do serviço funerário na cidade de São Paulo.
Após uma concorrência pública, o município de São Paulo celebrou contrato com uma empresa e criou uma entidade para fiscalizar essa concessão, formada por profissionais que conhecem os problemas e dispõem, em suas mãos, dos instrumentos contratuais e legais para sanar potenciais infrações que, porventura, venham ou tenham sido praticadas pelos contratados.
O problema da decisão não está em identificar a suposta falha no serviço e tentar resolvê-la, mas em desconsiderar — ou pelo menos não expor de maneira clara, nas razões de decidir — os instrumentos contratuais e legais previstos para a solução de contingências dessa natureza e especialmente os custos que esse tipo de decisão embute na estruturação de projetos de infraestrutura, por trazer, para a Administração Pública — e, naturalmente, para a sociedade — o ônus econômico de pagar pelo risco associado a decisões judiciais que afetam diretamente a economia do contrato.
Os princípios administrativos são grandes conquistas da sociedade e o serviço público deve ser prestado de maneira adequada, eficiente e atendendo aos interesses dos usuários. Mas quando se lida com Direito Administrativo, é importante que cada um de nós tenha a cautela de não permitir que o uso quase instintivo de categorias abstratas seja distorcido, para fazer valer a nossa vontade e a nossa ideia reprimida de Estado.
O Direito Administrativo é fruto do Estado de Direito, administrar é também aplicar a lei e o contrato continua sendo ato jurídico perfeito por definição e, consequentemente, um dos pilares da segurança jurídica.
[1] CAILLOSSE, J. (1982). Sur les enjeux idéologiques et politiques du droit administratif: APERÇUS DU PROBLEME, A LA LUMIERE DU « CHANGEMENT ». La Revue Administrative, 35(208), 361–368
[2] Por todos, Carolina Zacaner Zockun. Manual de Direito Administrativo Digital. 2024; Carlos Ari Sundfeld. Curso de Direito Administrativo em Ação – Casos e Leituras para Debates. 2024.
[3] Op cit.