O setor elétrico é divido nos ambientes de contratação regulado e livre. O ambiente de contratação regulado é o segmento do mercado de energia elétrica onde as distribuidoras, através de licitações, compram energia elétrica para fornecer aos consumidores cativos. Já no ambiente de contratação livre os consumidores, denominados livres, podem contratar a energia elétrica diretamente, negociando preços, prazos e outras condições.
Ocorre que, em razão das suas características físicas (bem imaterial que se dissipa ao longo do tempo), toda a energia elétrica gerada é injetada no Sistema Interligado Nacional (SIN) e imediatamente consumida. Neste contexto, surgiu o Mercado de Curto Prazo (MCP), também conhecido como mercado spot ou mercado das sobras, administrado pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).
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O Mercado de Curto Prazo é o ambiente destinado à apuração das diferenças entre a energia elétrica contratada e a energia efetivamente consumida no âmbito do mercado livre. Essas diferenças são valoradas pelo Preço de Liquidação das Diferenças (PLD).
No Mercado de Curto Prazo, operam consumidores livres, que têm liberdade para adquirir energia elétrica de diversos agentes, conforme suas necessidades e estratégias. O Mercado de Curto Prazo, portanto, funciona como um mecanismo de ajuste e liquidação de diferenças de energia — fundamental para lidar com as inevitáveis divergências entre o volume contratado e o consumo real de energia elétrica no Ambiente de Contratação Livre (ACL).
Dentro deste ambiente de sobras de energia, os consumidores operam ora na posição credora – hipótese em que a energia elétrica contratada no mercado livre é superior ao montante efetivamente consumido no período –, ora na posição devedora – situação em que o consumo de energia elétrica é superior ao montante de energia elétrica contratado no mercado livre.
Nesse cenário de liquidações contratuais, sobreveio o Convênio ICMS 15/2007[1] que, ao estabelecer as diretrizes aplicáveis no âmbito do Mercado de Curto Prazo, previu a necessidade de os consumidores de energia emitirem notas fiscais de saída e de entrada, com o destaque e recolhimento do ICMS, para lastrear as operações realizadas junto à CCEE.
O referido convênio foi internalizado por todas as administrações fazendárias estaduais e demonstram o entendimento fiscal no sentido de que as liquidações financeiras realizadas junto à CCEE consistem em saída de mercadoria (energia elétrica) para fins de exigência do ICMS.
Ocorre que, entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) quando do julgamento do Recurso Especial 1.615.790/MG[2], as operações praticadas pelos consumidores livres de energia junto ao Mercado de Curto Prazo da CCEE não constituem fato gerador do ICMS por se tratar de cessões de direitos contratuais do uso da energia elétrica.
A argumentação construída no Recurso Especial 1.615.790/MG foi moldada, em primeiro lugar, no entendimento de que as operações financeiras realizadas no mercado de curto prazo da CCEE não se caracterizam como contratos de compra e venda de energia elétrica, mas sim como cessões de direitos de energia entre consumidores. Assim, a transação no Mercado de Curto Prazo não configura circulação de mercadoria apta a atrair a incidência do ICMS.
Em segundo lugar, o tribunal entendeu que admitir a incidência do ICMS sobre as liquidações realizadas no Mercado de Curto Prazo implicaria a ocorrência de bis in idem. Isso porque, o imposto já incide sobre o preço total do contrato bilateral celebrado no mercado livre de energia elétrica.
Feito este breve histórico sobre a tributação das liquidações financeiras praticadas junto à CCEE, é importante ressaltar que com a promulgação da Emenda Constitucional 132/2023 e a publicação da Lei Complementar 214/2025[3], o fundamento no sentido de que as operações praticadas no Mercado de Curto Prazo não poderiam ser tributadas em razão da ausência de circulação de mercadoria (energia) perde o sentido.
Isso porque, enquanto o fato gerador do ICMS é a circulação de mercadorias (energia), nos termos do artigo 4º da Lei Complementar 214/2025, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) incidirão sobre operações onerosas com bens ou serviços. Ou seja, o campo de incidência dos novos tributos é maior do que o do ICMS, que estava restrito à circulação de mercadorias.
Entretanto, mesmo com a ampliação da hipótese de incidência trazida pela reforma tributária, a tributação das liquidações financeiras pode ser afastada com base na vedação ao bis in idem. Isso porque o IBS e a CBS já teriam incidido sobre o preço total do contrato bilateral celebrado no mercado livre de energia elétrica, de modo que a tributação das liquidações realizadas no mercado de curto prazo equivaleria à duplicidade de tributação, o que é vedado pelo ordenamento jurídico.
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Essa linha argumentativa encontra respaldo no voto proferido pelo ministro Benedito Gonçalves, relator do Recurso Especial 1.615.790/MG, já mencionado anteriormente. Naquela oportunidade, o ministro entendeu que a cessão de direitos entre consumidores livres não poderia ser novamente tributada pelo ICMS, visto que o imposto estadual já havia sido recolhido na celebração do contrato de compra e venda de energia firmado no mercado livre.
Diante do exposto, mesmo após a reforma tributária, o consumidor livre que figurar na posição devedora do Mercado de Curto Prazo da CCEE poderá questionar eventual exigência fiscal, sob pena dos entes federados exigirem o IBS e a CBS sobre os mesmos fatos geradores. Além disso, cumpre registrar que eventual impacto tributário pode ser mitigado com o direito creditório.
[1] Dispõe sobre o cumprimento de obrigações tributárias em operações com energia elétrica, inclusive aquelas cuja liquidação financeira ocorra no âmbito da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE. Disponível em: https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2007/CV015_07#:~:text=Disp%C3%B5e%20sobre%20o%20cumprimento%20de,Comercializa%C3%A7%C3%A3o%20de%20Energia%20El%C3%A9trica%20%2D%20CCEE.&text=Publicado%20no%20DOU%20de%2004.04,%2C%20pelo%20Despacho%2024%2F07.
[2] “Tais operações não decorrem propriamente de contratos de compra e venda de energia elétrica, mas sim de cessões de direitos entre consumidores, intermediadas pela CCEE, para a utilização de energia elétrica adquirida no mercado livre cujo valor total já sofreu a tributação do imposto estadual”.
[3] Brasil. Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025. Institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS); cria o Comitê Gestor do IBS e altera a legislação tributária. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jan. 2025. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp214.htm. Acesso em: 26 maio 2025.