A coluna de hoje discute as bases teóricas e normativas que forjam um caso em tramitação no Supremo Tribunal Federal, iniciado com a oposição, pela Ferrovia Centro-Atlântica S.A., de embargos à execução fiscal em desfavor do município de Varginha (MG) contra uma cobrança de IPTU.
Pessoa jurídica de direito privado, ela é concessionária do direito de exploração, em regime de exclusividade, do transporte ferroviário na malha Centro-Leste, tendo arrendado bens operacionais afetos à prestação do serviço público concedido, após ter tido êxito em certame público para cuja prestação se submete a regulamentação setorial.
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Esses bens não são de sua propriedade, não detendo, ela, domínio útil ou a posse com animus domini. A legislação que liquidou a Rede Ferroviária Federal (Lei 11.482/2007) transferiu a propriedade de todos os seus bens operacionais para o DNIT, nos termos do art. 21, XII, “d”, da Constituição Federal.[1]
Os embargos da Ferrovia foram julgados procedentes, afastando o IPTU. Varginha apelou. O TJMG, na apelação, declarou legítima a exação do IPTU.
A Ferrovia interpôs extraordinário alegando (i) ser parte ilegítima para figurar no polo passivo da cobrança, por não exercer a propriedade, tampouco a posse apta a autorizar a sujeição ao IPTU (ausência de animus domini); (ii) inexistir base de cálculo para a cobrança da exação; e (iii) haver imunidade recíproca (art. 150, VI, “a” da CF).
Reconhecendo a repercussão geral da discussão, o STF definiu o Tema 1297: “Imunidade tributária recíproca sobre bens afetados à concessão de serviço público”.
Inicialmente relatando o caso, o ministro Luís Roberto Barroso sumariou quatro teses que tocam aspectos distintos da macrodiscussão: (i) Tema 385: a imunidade não se aplica a empresa privada, arrendatária de imóvel público, que explora atividade econômica com fins lucrativos; (ii) Tema 437: incide IPTU sobre imóvel de pessoa jurídica de direito público cedido a pessoa jurídica de direito privado; (iii) Tema 508: a sociedade de economia mista, cujos ativos são negociados em Bolsa e que distribui lucro, não está abrangida pela imunidade tributária; (iv) Tema 1140: as empresas públicas e as sociedades de economia mista delegatárias de serviços públicos essenciais, que não distribuam lucros a acionistas privados nem ofereçam risco ao equilíbrio concorrencial, são beneficiárias da imunidade tributária recíproca.
“Nenhuma delas, no entanto, trata especificamente da manutenção da imunidade sobre bens públicos afetados à serviço público outorgado a particular”, disse o ministro.
O caso, hoje concluso, ganhou a honrosa relatoria do ministro André Mendonça.
Em Política Literária, Carlos Drummond de Andrade escreveu que o poeta municipal discutia com o poeta estadual “qual deles era capaz de bater o poeta federal”.[2] Aludia, o “Poeta dos Poetas”, à autofagia brasileira quanto ao seu próprio federalismo?
O caso relatado acima exibe mais uma dessas nuances confusas do tipo de federação que o Brasil, em sua história, viu se consolidar, mas, ao mesmo tempo, entrega à jurisdição constitucional a possibilidade de corrigir iniciativas indevidas dos Municípios contra o patrimônio da União, mantendo hígida a autoridade da Constituição Federal.
A imunidade tributária recíproca é uma das muitas expressões do princípio da lealdade federativa, que dimana da indissolubilidade do pacto federativo (art. 1º da CF) e da vedação aos entes federados de criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si (inciso III do art. 19 da CF).
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Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, na condição de princípio fundamental de caráter geral e estruturante, o princípio federativo e a correspondente forma federativa de Estado foram, seguindo a tradição constitucional pretérita, incluídos (de acordo com o inciso I do § 4º do art. 60 da CF) no elenco dos limites materiais ao poder de reforma constitucional, ou seja, das assim designadas “cláusulas pétreas”.
Com isso, se assegura, de modo rigoroso, o caráter indissolúvel da Federação, tal como enunciado já no art. 1º da Constituição. A condição de “cláusula pétrea”, ademais, assegura algo além de uma proibição de abolição do instituto (ou instituição) previsto na Constituição, abarcando a proibição até mesmo de medidas restritivas que, embora não venham a suprimir o conteúdo protegido, o afetem em seus elementos essenciais. Eventuais ajustes no esquema federativo, como, por exemplo, na repartição constitucional de competências, não necessariamente implicam ofensa ao princípio federativo e ao Estado federal, desde que o preservem o seu conteúdo essencial.[3]
Na doutrina alemã, triunfa o Bundestreue (princípio da lealdade à Federação ou da fidelidade federativa), ou Prinzip des bundesfreundlichen Verhaltens (princípio do comportamento federativo amistoso) ou, por fim, nas palavras de Peter Häberle, Bundesfreundlich (conduta favorável à organização federativa).[4] O ministro Gilmar Mendes conduziu o seu voto na ADI 750 a partir desses conceitos.
A iniciativa dos municípios de cobrar IPTU de propriedades da União afetadas à prestação de serviços públicos igualmente de titularidade da União, cuja competência para erigir normas disciplinadoras é, uma vez mais, da União, e que não apenas é exercida fora do ambiente concorrencial como envolve a prestação de serviços da União por meio de seus agentes (no caso dos aeroportos, a Receita Federal, a Polícia Federal…), é prática que erode os pilares do pacto federativo e o subprincípio da lealdade federativa.
Segundo o art. 175 da Constituição, “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.
Concessões existem para incrementarem a qualidade na prestação do serviço público, realizando o interesse público e preservando o patrimônio público concedido. Essa transferência apenas da execução do serviço público a terceiros não retira do poder concedente a titularidade do serviço e o seu controle.
A imunidade tributária recíproca, por sua vez, decorre da necessidade de observar-se, no contexto federativo, o respeito mútuo e a autonomia dos entes. Visa assegurar ao Estado o desempenho de suas funções, incluído o exercício de serviços públicos, seja direta, seja indiretamente, além do primado da isonomia entre as pessoas políticas, sem sujeição de um ente a outro, mormente na esfera tributária. Prevista no art. 150, VI, “a”, da Constituição, ela abrange seus respectivos entes administrativos criados para executar serviços públicos exclusivos do Estado, incluindo os concessionários.
Esvaziar a imunidade tributária recíproca malfere o sistema federativo, como anota o ministro Edson Fachin ao dizer: “com impactos sobre a prestação de serviços públicos, sobre a modelagem de outorga para o setor privado, assim como sobre a capacidade tributária dos entes municipais” (Tema 385 – RE 601.720).
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Eis o ministro Celso de Mello: “A imunidade tributária recíproca – consagrada pelas sucessivas Constituições republicanas – representa um fator indispensável à preservação institucional das próprias unidades integrantes do Estado Federal, constituindo, ainda, importante instrumento de manutenção do equilíbrio e da harmonia que devem prevalecer, como valores essenciais que são, no plano das relações político-jurídicas fundadas no pacto da Federação” (RE 363.412/BA-AgR, DJe 19/9/2008).
Os municípios brasileiros, em toda a sua autonomia, são uma virtuosa criação da Constituição de 1988. Não podem, todavia, em sua jornada em busca de emancipação financeira, desejar o que é do outro. Negar as propriedades da União para, desconsiderando o pacto federativo e a imunidade tributária recíproca, tributá-las pelo IPTU, é um exemplo de deslealdade federativa que há de encontrar limites na interpretação acerca das competências tributárias de cada ente. Há, claramente, limites.
Afinal de contas, como anotou Robert Frost: “Boas cercas fazem bons vizinhos”.
[1] “Art. 21. Compete à União: XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;”.
[2] Poema dedicado a Manuel Bandeira, publicado em Alguma poesia, Editora Pindorama, 1930.
[3] Sarlet, Ingo Wolfgang. Curso de Direito Constitucional. Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero. São Paulo: Saraivajur, 2022, p. 970.
[4] Häberle, Peter. El Estado Constitucional, Universidad Naci. Autônoma de México: México, 2001, p. 264.

