Na coluna publicada no último dia 8, falamos sobre como as discussões relacionadas à inteligência artificial e propriedade intelectual começam a tomar espaço, embora ainda carecendo de sistematização. Tratamos da relação dos direitos de propriedade intelectual com o sistema de IA em si e, também, com os insumos usados para treinamento de máquinas.
Para retomar a conversa, vale lembrar que há direitos de PI aptos a proteger os sistemas de IA, ainda que a proteção seja precária frente aos investimentos realizados nestas tecnologias. Existe uma viva discussão quanto à legalidade do uso de insumos protegidos por direitos autorais – algo que demanda amadurecimento diante das múltiplas abordagens assumidas em diferentes jurisdições.
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Cabe agora enfrentar a questão: existe proteção de PI para o resultado apresentado pelos sistemas de IA em resposta a um input? Seriam os outputs gerados protegíveis por direitos de PI – como direitos autorais, marcas ou patentes? Neste ponto, ainda que também exista discussão, parece que há caminho para consenso.
Quanto a patentes, tornou-se famoso o caso Dabus, a primeira tentativa conhecida de se obter patente para invenção gerada por IA. Stephen Thaler, desenvolvedor do sistema Dabus, argumentou em seus pedidos de patente que a invenção output teria sido integralmente concebida pela IA e sem qualquer contribuição de um inventor humano.
Defendeu que, por ser desenvolvedor da IA, teria direitos sobre a proteção conferida aos resultados que apresentasse. Nos formulários de depósito de patente, nenhum inventor foi nomeado como tal, requisito presente em diferentes legislações.
Iniciou-se uma cruzada pela obtenção da patente nos escritórios de Australia, Alemanha, Israel, Nova Zelândia, África do Sul, Coreia do Sul, Reino Unido e EUA. Contudo, os pedidos não foram bem-sucedidos. Em praticamente todas as jurisdições, a patente foi negada pelo escritório competente e, posteriormente, pelas cortes locais quando houve judicialização, sob o argumento de que é necessária atribuição de inventor à invenção. O INPI seguiu a mesma abordagem: o Brasil também negou o pedido de patente, alegando a necessidade de se identificar uma pessoa como inventora.
Isso não significa que invenções que se beneficiem de resultados advindos de sistemas de IA são impossíveis de patenteamento. Verificados os critérios de patenteabilidade e em que medida o sistema contribuiu para que humanos alcançassem a invenção que se pretende proteger, a concessão de patentes é possível e prática do dia a dia em grandes escritórios de registros.
Neste sentido, estas instituições têm elaborado diretrizes e materiais dedicados ao tema, que estão sendo constantemente adaptados frente ao rápido desenvolvimento das tecnologias[1].
De forma similar parece estar caminhando o entendimento quanto à possibilidade de proteção por direitos autorais dos textos, imagens, músicas, vídeos – em suma, obras criativas – advindas de sistemas de IA, ao menos nos Estados Unidos. Nessa seara, o vale destacar o histórico do Escritório de Direitos Autorais, que desde 2022 vem articulando debates sobre possibilidade de registro de obras “outputs”[2].




As imagens acima revelam as obras que foram apresentadas a registro perante o Escritório de Direitos Autorais dos EUA entre fevereiro de 2022 e janeiro de 2025. Apenas a última imagem (“A single piece of Ameican cheese”) foi considerada passível de proteção por direitos autorais.
No primeiro momento, nenhuma das obras havia sido considerada ‘protegível’ sob a perspectiva da lei norte-americana. Avaliou-se que não houve contribuição humana por parte daqueles que buscavam o registro e, portanto, a titularidade dos direitos. Em outras palavras, o entendimento foi no sentido de que a proteção de direitos autorais requer criação por seres humanos – tida como a pedra fundamental dos direitos autorais nos EUA.
Já no começo deste ano, em guidelines específicos sobre o tema, o Escritório de Direitos Autorais foi mais a fundo na questão[3]. Defendeu que nos casos em que sistemas de IA são utilizados como ferramenta para criadores, que permanecem responsáveis pelos elementos de expressão da obra, é possível obter proteção de direitos autorais para outputs em razão de contribuição humana na seleção, coordenação e arranjo final dos elementos. A decisão, caso a caso, dependerá da comprovação de suficiente contribuição humana no ato criativo, o que foi decisivo para reverter o cenário da última obra indicada acima. Neste caso, o titular parece não ter medido esforços para comprovar todas as suas ações humanas para chegar à imagem final – apresentação de todos os prompts utilizados, elaboração de vídeo com o passo a passo da geração da imagem, identificação dos programas utilizados. Aparentemente, houve tal convencimento e decisão favorável foi apresentada no dia seguinte à publicação das guidelines[4].
Mais desafiador, porém, são as situações nas quais a obra não é registrada, como é comum no Brasil. Parece cada vez mais complexo identificar quais obras foram geradas por sistemas de IA (e em que medida). Mais: se algumas obras já têm grande aceitação em determinados mercados[5], a discussão sobre autoria, originalidade e ‘merecimento’ da proteção autoral será cada vez mais disputada.
Não é improvável pensar que tribunais terão que se manifestar em situações nas quais se verifiquem potenciais infrações às obras originárias ou prejuízos de terceiros. Assim tem sido no mercado musical, com número expressivo de obras criadas por IA (deepfakes) sendo inseridas em plataformas de streaming[6].
Ao menos para patentes e direitos autorais, percebe-se disposição do sistema de PI para negar proteção a produtos única e exclusivamente derivados de sistemas de IA. Trata-se, como abordamos, de um reconhecimento à necessária participação humana em criações que terão proteção jurídica.
Contudo, o mesmo não se aplicaria a marcas, uma vez que a criatividade e novidade de uma expressão ou logo são comparadas às existentes na classe de produtos ou serviços que se busca registrar – sem necessidade de indicação de autoria. Logo, em primeira avaliação, se um sistema de IA desenvolver uma imagem para logomarca para uma linha de sabonetes que não é semelhante a outras já registradas para tais produtos, o registro é possível. Fato é, porém, que essa é uma discussão muito menos travada no âmbito das marcas do que nos demais direitos de propriedade intelectual exemplificados acima.
Cada direito de PI existente, portanto, responderá à possibilidade de proteção de outputs, a depender de seus critérios legais de caracterização. À medida que sistemas de IA se mostram mais sofisticados e seu uso é difundido, teremos discussões mais profundas quanto à interpretação da legislação concebida por vezes em tempos anteriores à própria internet.
Em alta | março e abril.25
1. Brasil: INPI abriu consulta pública para debater alterações na normativa que define processo para reconhecimento de marcas de alto renome, assim consideradas as marcas que detêm reconhecimento público para além da classe de produtos ou serviço que foi primeiramente registrada. Contribuições serão recebidas pelo INPI até o dia 18 de maio[7].
2. Brasil: Foi promulgada a Lei 15.122/25, que cria mecanismos para o Poder Executivo adotar contramedidas em retaliação comercial a países ou blocos econômicos que indevidamente restringirem acesso de produtos brasileiros a seus mercados. Chamada de ‘Lei da Reciprocidade Econômica’, o texto final inclui dentre as medidas previstas possibilidade de suspender concessões ou obrigações de direitos de propriedade intelectual vigentes no Brasil.
3. MDIC, INPI: em comemoração ao Dia da Propriedade Intelectual, em 26.4, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comercio e Serviços e o INPI organizarão evento virtual, no dia 24 de abril, às 14h30, com a temática “Música e Propriedade Intelectual: impulsionando a cultura e integração regional”. Haverá transmissão pelo canal do YouTube do INPI.
[1] São alguns exemplos: (1) novo guideline foi emitido pelo USPTO, em 16.7.24 (link); (2) novas diretrizes do escritório europeu de patentes, disponibilizadas em 1.4.2025, com item 3.3.1 do capítulo G dedicado à IA (link); (3) novas diretrizes chinesas, publicadas em 6.12.24, sobre depósitos de patente para invenções relacionadas à IA (link); (4) página do escritório de patentes japonês, com materiais sobre invenções relacionadas a sistemas de IA (link); (5) página do escritório de patentes sul-coreano, também no mesmo sentido (link); e (6) material desenvolvido entre os principais escritórios de patente no mundo sobre tendências de invenções relacionadas a IA (link).
[2] Nos EUA, a proteção de direitos autorais não depende do registro junto ao Escritório competente, mas tal registro é largamente utilizado para que se possa, dentre outras possibilidades, apresentar ações judiciais contra infração de direitos autorais e proteger contra importação de cópias infratoras.
[3] Material intitulado “Copyright and Artificial Intelligence – part 2: copyrightability”, publicado em 29.1.25 (link).
[4] Entendeu o escritório que houve, por parte do autor, a “seleção, coordenação e arranjo de materiais gerados por IA” para a conclusão da versão final da imagem que se buscou registrar. Há quem argumente que a forma como o processo de registro foi instruído foi fundamental para convencimento do Escritório. Ao mesmo tempo, há questionamento se as obras anteriores falharam nessa explicação e não na criatividade e contribuição em si de seus geradores. Cabe também notar que Kent Keirsey é o CEO da Invoke AI, ferramenta que se dedica a estúdios de criadores profissionais do segmento de mídias visuais e que argumenta se destacar no mercado pela proteção de direitos de PI para aqueles que a utilizam (para mais informações visite www.invoke.com).
[5] Como exemplo, temos os leilões de obras de arte integralmente desenvolvidas por sistemas de IA, que estão atraindo compradores e grandes investimentos, já superiores a US$ 1 milhão (link).
[6] Os serviços de streaming musical têm se deparado com prejuízos relacionados às músicas geradas integralmente por sistemas de IA inseridas em suas plataformas por quem busca remuneração pela sua reprodução (por vezes iniciada sistemas automatizados e não usuários reais). Dados da Sony Music indicam remoção de mais de 75 mil faixas deepfakes por mês (link).
[7] Participação na consulta pública é possível por meio do site https://www.gov.br/inpi/pt-br/servicos/marcas/consultas-publicas/consultas-publicas