Bombardeio em hospital no sul do território palestino deixou 22 mortos, entre as vítimas, cinco jornalistas Internacional, Benjamin Netanyahu, Israel, Oriente Médio, Reuters CNN Brasil
Uma análise da Reuters, baseada em evidências visuais e outras informações sobre o ataque israelense a um hospital em Gaza no mês passado, contradiz a explicação oficial de Israel sobre o que aconteceu no bombardeio.
O ataque ocorrido em 25 de agosto ao Hospital Nasser matou 22 pessoas, incluindo cinco jornalistas.
As forças israelenses planejaram o ataque usando imagens de drones que, segundo um oficial militar, mostravam uma câmera do Hamas, que era o alvo da ofensiva.
No entanto, evidências visuais e de outras reportagens da Reuters comprovam que a câmera nas imagens pertencia, na verdade, à agência de notícias e vinha sendo usada há muito tempo por um dos seus próprios jornalistas.
Após a investigação, o oficial militar israelense agora afirma que as tropas agiram sem a aprovação necessária do comandante regional sênior responsável pelas operações em Gaza.
Um dia após os tanques israelenses atacarem o Hospital Nasser, o oficial disse que a revisão inicial do IDF concluiu que as tropas tinham como alvo uma câmera do Hamas porque ela estava filmando os militares a partir do hospital.
Segundo ele, a câmera era vista com suspeita porque estava coberta por uma toalha, por isso foi tomada a decisão de destruí-la.
Uma captura de tela das imagens do drone do IDF mostra a câmera, coberta por um pano bicolor, na escada do hospital. O oficial militar confirmou à Reuters, na semana passada, que a câmera coberta pelo tecido era o alvo.
Mas o tecido mostrado na captura de tela não foi colocado ali pelo Hamas. Era um tapete de oração pertencente a Hussam al-Masri, jornalista da Reuters que foi morto no ataque, revelou a investigação da agência sobre o incidente.
Pelo menos 35 vezes desde maio, Masri posicionou sua câmera na mesma escada do Hospital Nasser, na cidade de Khan Younis, no sul de Gaza, para fazer transmissões ao vivo enviadas aos clientes de mídia da Reuters em todo o mundo.
Ele frequentemente cobria sua câmera com o tapete verde e branco para protegê-la do calor e da poeira, concluiu a Reuters.
Investigações da ofensiva israelense
A investigação oferece o relato mais completo até o momento sobre como o ataque ocorreu, incluindo o fato de que as forças israelenses violaram a cadeia de comando.
A Reuters também estabeleceu, de forma definitiva que a câmera alvo pertencia à agência de notícias.
A Associated Press, que também perdeu um jornalista no ataque ao hospital, já havia informado que encontrou fortes indícios de que a câmera descrita pelas forças israelenses como alvo pertencia à Reuters.
Apesar dessas novas revelações, um mês após o ataque, o IDF ainda não explicou completamente como acabou atingindo a câmera da Reuters e matando Masri.
O exército israelense também não esclareceu:
- Por que não avisou a equipe do hospital ou a Reuters sobre a intenção de atacar o hospital.
- Por que, após atacar a câmera na investida inicial, o IDF bombardeou novamente a escada nove minutos depois, matando outros jornalistas e socorristas que haviam chegado ao local.
- Se foi considerado que a escada do hospital onde Masri estava filmando quando foi morto era um local usado regularmente por muitos jornalistas para registrar imagens e fazer reportagens durante a guerra.
- Quem aprovou o ataque. O oficial militar não informou quem deu a ordem para atacar, apesar da falta de aprovação do comandante regional.
A ausência respostas para o ataque segue um padrão na ofensiva militar israelense que têm matado jornalistas desde que Israel iniciou os bombardeios, que já duram quase dois anos, após o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023.
O Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) informou ter documentado 201 jornalistas e profissionais da mídia mortos em Gaza, Israel e Líbano, onde a guerra se expandiu logo após o ataque inicial.
O total de vítimas inclui 193 palestinos mortos por Israel em Gaza, seis mortos por Israel no Líbano e dois israelenses mortos no ataque de 7 de outubro.
O CPJ afirmou que Israel nunca publicou os resultados de uma investigação formal nem responsabilizou alguém pelas mortes de jornalistas pelas IDF.
“Além disso, nenhum desses incidentes levou a uma revisão significativa das regras de engajamento de Israel, nem a condenação internacional resultou em qualquer mudança no padrão de ataques a jornalistas nos últimos dois anos”, disse Sara Qudah, diretora regional do CPJ para o Oriente Médio e Norte da África.
Ao examinar o ataque de 25 de agosto pelas forças israelenses, a Reuters analisou mais de 100 vídeos e fotos do local e entrevistou mais de duas dezenas de pessoas familiarizadas com o ataque e os eventos que o antecederam.
Posição estratégica
Testemunhas afirmam que a câmera mostrada na imagem do drone só poderia ser a de Masri. Nos últimos meses, ninguém mais usava uma câmera de vídeo grande montada em tripé naquele local, nem cobria o equipamento com um tapete de oração.
Outros jornalistas, segundo as testemunhas, usavam apenas celulares.
Aumentando a suspeita do exército israelense em relação à câmera e sua localização, as tropas também viram outra “toalha” cobrindo a cabeça de uma pessoa próxima, disse o oficial militar.
Na captura de tela das imagens do drone das IDF que mostram o alvo das tropas, uma pessoa aparece sentada próxima à câmera, vestindo roupas escuras e o que parece ser um lenço branco na cabeça.
A pessoa parece ser Mariam Dagga, com uma roupa semelhante à que ela usava em outras quatro imagens tiradas no mesmo local — incluindo uma de 16 de agosto e outra do dia do ataque. Em 21 de agosto, data em que a imagem do drone foi registrada, Dagga usava seu celular para fazer uma transmissão ao vivo da escada para a Associated Press.
O jornalista visual da Reuters, Mohammad Salem, que deixou Gaza no início do ano e conhecia bem Dagga, identificou a pessoa na imagem do drone como sendo a repórter da AP. Salem disse ter reconhecido o lenço dela. Além disso, Masri havia lhe contado que Dagga estava gravando perto dele na escada alguns dias antes do ataque.
Quando foi morto, em 25 de agosto, Masri já estava gravando da escada do hospital havia cerca de duas horas. Como fazia rotineiramente ao longo do mês, ele posicionou sua câmera no quarto andar para registrar imagens ao vivo da região.
O ponto elevado proporcionava melhor visibilidade, acesso à energia elétrica e uma conexão de internet mais estável, explicou Salem. Da escada, a câmera registrava a área ao redor do hospital, incluindo a movimentada rua em frente.
Repercussões do ataque
O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, chamou o ataque ao hospital de um “trágico acidente”.
O oficial militar disse à Reuters que Masri e outros jornalistas presentes não eram alvos do ataque e não eram suspeitos de terem ligações com o Hamas.
A alegação das Forças de Defesa de Israel (IDF) de que o Hamas estaria filmando as forças militares israelenses a partir do Hospital Nasser “é falsa e fabricada”, disse Ismail Al-Thawabta, diretor do escritório de mídia do governo de Gaza, controlado pelo Hamas.
Israel estaria tentando “encobrir um crime de guerra completo contra o hospital, seus pacientes e a equipe médica”, afirmou.
Ataque a hospitais
As forças israelenses têm atacado repetidamente hospitais em Gaza, alegando que o Hamas opera a partir deles — algo que o grupo nega.
Em entrevista à Reuters, dois especialistas jurídicos afirmaram que a ofensiva contra centros hospitalares constitui crime de guerra.
Há uma exceção estreita, quando um hospital é usado para “atividade prejudicial ao inimigo”, explicou Tom Dannenbaum, professor da Faculdade de Direito de Stanford.
Mas mesmo quando esse critério é atendido, os atacantes devem garantir que o dano esperado a civis não seja excessivo em relação à vantagem militar, e devem, primeiro, emitir um aviso, permitindo que o outro lado pare de usar indevidamente o hospital e tenha tempo razoável para cumprir, disse ele.
Mohammed Saqer, chefe de enfermagem do Hospital Nasser, afirmou que as IDF tinham os números de telefone da equipe do hospital e ligavam regularmente para a direção para perguntar sobre o número de pacientes e suprimentos.
Segundo ele, o hospital nunca recebeu um aviso de ataque.
“Se eles tivessem nos avisado, teríamos evitado essa catástrofe,” disse Saqer à Reuters por mensagem de texto.
A Reuters também confirmou, por meio de seu porta-voz, que não recebeu nenhum aviso prévio do ataque.

