O acesso à saúde no Brasil há muito se equilibra entre o ideal constitucional e a reserva do possível do sistema público. Nos últimos anos, a judicialização da saúde tem sido um fenômeno persistente no Brasil, representando um dos principais desafios do Sistema Único de Saúde (SUS) para o desenvolvimento de uma infraestrutura pública baseada na equidade, planejamento e sustentabilidade do sistema.
De acordo com os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), houve um aumento significativo no número de casos novos propostos perante a Justiça estadual, federal e os Tribunais Superiores, entre os anos de 2020 e 2024.
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A análise dos dados revela uma tendência de crescimento contínuo, conforme mostra o quadro abaixo:
Ano | Número de casos novos | Percentual de aumento |
2020 | 344.200 | – |
2021 | 397.566 | 15,5% |
2022 | 461.568 | 16,1% |
2023 | 568.440 | 23,15% |
2024 | 663.864 | 16,79% |
No período acima referido, houve um aumento de 92,87% no número de novos casos judicializados, evidenciando a crescente utilização da via judicial para acesso à saúde. As demandas mais comuns são por tratamentos médico-hospitalares e fornecimento de medicamentos, impactando tanto o setor público quanto o privado.
O objetivo deste artigo é avaliar como os Temas 6 e 1234 do STF podem influenciar a política de acesso à saúde ao reforçar a custo-efetividade estatal.
No âmbito do STF, 2024 foi um ano divisor de águas sobre os critérios a serem aplicados em demandas judiciais que envolvem a obrigação do Estado de fornecer medicamentos que não estejam incorporados ao SUS.
Em 16 de setembro de 2024, por meio do Tema 1234 (RE 1.366.243), o STF estabeleceu que ações relativas a medicamentos não incorporados ao SUS, mas registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), devem tramitar na Justiça Federal se o custo anual do tratamento for igual ou superior a 210 salários mínimos. A União será responsável pelo custeio integral dessas ações, com ressarcimento aos estados e municípios quando necessário.
Os medicamentos não incorporados são aqueles que não constam na política pública do SUS, medicamentos previstos nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs) para outras indicações, medicamentos sem registro na Anvisa e medicamentos off label sem PCDT ou que não integrem listas do componente básico. A competência da Justiça Federal é mantida para ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa, devendo ser propostas contra a União.
Além disso, se houver mais de um medicamento com o mesmo princípio ativo, deve ser considerado o de menor preço, conforme a lista da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). Caso não haja valor fixado, o juiz pode solicitar auxílio à CMED ou analisar com base no orçamento apresentado pelo autor. Em caso de cumulação de pedidos, deve-se considerar apenas o valor dos medicamentos não incorporados.
Logo em seguida, em 26 de setembro de 2024, por meio do Tema 6 (RE 566.471), o STF estabeleceu que, como regra geral, a Justiça não pode obrigar o Estado a fornecer medicamentos que não estão nas listas de dispensação do SUS, independentemente do custo.
Entretanto, a concessão judicial de medicamentos registrados na Anvisa, mas não incorporados às listas do SUS, é permitida excepcionalmente se cumpridos, cumulativamente, os seguintes requisitos, cujo ônus probatório incumbe ao autor da ação: (a) negativa de fornecimento do medicamento na via administrativa, nos termos do item “4” do Tema 1234 da repercussão geral; (b) ilegalidade do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec, ausência de pedido de incorporação ou da mora na sua apreciação, tendo em vista os prazos e critérios previstos nos artigos 19-Q e 19-R da Lei 8.080/1990 e no Decreto 7.646/2011; (c) impossibilidade de substituição por outro medicamento constante das listas do SUS e dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas; (d) comprovação, à luz da medicina baseada em evidências, da eficácia, acurácia, efetividade e segurança do fármaco, necessariamente respaldadas por evidências científicas de alto nível, ou seja, unicamente ensaios clínicos randomizados e revisão sistemática ou meta-análise; (e) imprescindibilidade clínica do tratamento, comprovada mediante laudo médico fundamentado, descrevendo inclusive qual o tratamento já realizado; e (f) incapacidade financeira de arcar com o custeio do medicamento.
Apesar das decisões do STF terem buscado, principalmente, definir balizas sobre o direito à saúde com vistas a garantir a sustentabilidade do SUS, também reconhecendo a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) como órgão técnico responsável por fundamentar as decisões do Ministério da Saúde sobre a incorporação de novas tecnologias (artigos 19-Q da Lei nº 8.080/1990), restou clara a necessidade de ações por parte do Executivo para otimizar tais processos.
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Além de levarem em consideração o paradigma da custo-efetividade, há um aspecto bastante relevante e penoso para os pacientes na decisão do Judiciário: impor ao paciente o ônus de provar (i) a ilegalidade do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec, (ii) a ausência de pedido de incorporação ou (iii) a demora na sua apreciação para além dos 180 dias (prorrogáveis por mais 90), conforme prevê o artigo 19-R da Lei 8.080/1990.
Não se trata de uma prova fácil de ser produzida sob qualquer aspecto que se analise, notadamente quando se tratar da demonstração da ilegalidade do ato da Conitec, o que exigirá uma análise completa e aprofundada do processo administrativo relativo à incorporação do medicamento ao qual o paciente necessita acesso.
Por esse e outros motivos, após a decisão do STF, a deputada Rosangela Moro (União Brasil-SP) apresentou o PL 168/2024, que visa flexibilizar as exigências para concessão de medicamentos não incorporados pelo SUS, como resposta à preocupação do setor regulado de que as novas regras do STF possam dificultar o acesso de pacientes a tratamentos ao impor um ônus probatório elevado ao paciente, que muitas vezes se encontra em um estado vulnerável e de urgência.
Assim, medidas legais e administrativas por parte dos demais Poderes parecem-nos inevitáveis, seja para corrigir injustiças no exercício do direito de acesso à saúde, seja para aperfeiçoar processos de avaliação e incorporação de inovações tecnológicas desenvolvidas pela indústria.
Os temas do STF não devem ser vistos como uma solução, mas como uma fotografia de até que ponto chegamos. Desafios orçamentários precisam ser considerados, mas não podem servir de escusa para o cumprimento de obrigações legais ou para cercear o direito constitucional da população brasileira de acesso a uma saúde universal, equânime e integral.