Há cerca de um ano, entrou em vigor a Lei 14.903/2024, estabelecendo o marco regulatório do fomento à cultura no Brasil. Essa nova legislação visa a impulsionar a produção e o acesso à cultura em um cenário de maior previsibilidade e segurança jurídica. Para empresas ligadas ao setor cultural, patrocinadoras ou investidoras, a compreensão do alcance e dos reflexos da lei é uma estratégia inteligente para navegar em um ambiente de negócios em transformação.
Este artigo é o primeiro de uma série que explorará aspectos cruciais de compliance e direito concorrencial, essenciais para todos os agentes atuantes no setor cultural, como o agente cultural, o patrocinador ou o investidor.
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A lei menciona, por exemplo, que o agente cultural é qualquer “agente atuante na arte ou na cultura, na qualidade de pessoa física, microempresário individual, empresário individual, organização da sociedade civil, sociedade empresária, sociedade simples, sociedade unipessoal ou outro formato de constituição jurídica previsto na legislação”. Neste artigo inaugural, serão abordadas as principais previsões da lei sobre instrumentos e recursos para fomento cultural no Brasil.
A Lei 14.903/2024 prevê diversos tipos de recursos para o fomento cultural, incluindo recursos públicos (como dotações orçamentárias e fundos públicos destinados a políticas culturais) e privados, com ou sem incentivo fiscal. Para os recursos com incentivo fiscal, a lei estabelece que seus regimes jurídicos podem ser aplicados, sendo que a Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) não será aplicável para o fomento cultural.
Para captação sem incentivo fiscal, a lei prevê três hipóteses de instrumentos: (i) acordos de patrocínio privado celebrados pela administração pública com patrocinadores; (ii) instrumentos celebrados por agentes culturais para captação de recursos privados complementares a ações culturais apoiadas por políticas públicas de fomento e (iii) outros instrumentos celebrados pela administração pública para captação de recursos privados para políticas públicas, definidos em legislação.
Acordos de patrocínio privado podem ser apresentados por proposta avulsa do interessado ou por chamamento público via edital de patrocínio privado direto. Em caso de proposta avulsa, a administração pública deve dar publicidade para que propostas alternativas sejam apresentadas, visando à transparência. Apesar de essas propostas não envolverem incentivo fiscal, a administração pública pode fornecer compensações aos patrocinadores, como veiculação de publicidade, uso de espaço ou bens públicos. Essas compensações devem ser avaliadas pela administração pública.
Ademais, recursos complementares podem ser obtidos pelos agentes culturais por meio de cobrança de ingressos, bilheteria, participação em eventos, uso de bens, venda de produtos ou doações.
Conforme o artigo 4º da lei, os instrumentos para a execução do regime próprio de fomento à cultura são: (i) com repasse de recursos pela administração pública: o termo de execução cultural, o termo de premiação cultural e o termo de bolsa cultural e (ii) sem repasse de recursos pela administração pública: o termo de ocupação cultural e o termo de cooperação cultural.
A lei permite que o agente cultural requisite à administração pública um chamamento público para a celebração de instrumentos de execução do regime próprio de fomento à cultura, incentivando a transparência e a competição.
Também são detalhadas as exigências de prestação de contas para cada instrumento, reforçando o pilar da transparência e o da responsabilidade fiscal.
O primeiro instrumento relevante é o Termo de Execução Cultural. Ele estabelece as obrigações da administração pública e do agente cultural para a realização da ação cultural. A prestação de contas ocorre por meio de um Relatório de Objeto de Execução Cultural, a ser entregue em até 120 dias do fim da vigência do instrumento, para valores globais superiores a R$ 200 mil. Um Relatório Financeiro de Execução Cultural pode ser solicitado em até 120 dias do recebimento de notificação, caso o relatório de objeto seja insuficiente ou em caso de denúncia de irregularidade.
A autoridade responsável pelo julgamento da prestação de contas pode solicitar documentação complementar, aprovar com ou sem ressalvas ou rejeitar parcial ou totalmente a prestação de contas. Em caso de rejeição, pode determinar a devolução de recursos proporcionais à inexecução, o pagamento de multa (cujo valor será definido em regulamento) e a suspensão da possibilidade de celebrar novo instrumento de fomento por um período de 180 a 540 dias.
Essas medidas podem ser cumulativas em caso de má-fé e podem ser convertidas em um plano de ações compensatórias. A decisão deve ser proferida em até 360 dias do término do prazo de vigência.
O segundo instrumento é o Termo de Bolsa Cultural. Destinado à promoção de estudos e pesquisas, exige a comprovação do cumprimento do encargo por meio de um Relatório de Bolsista. O descumprimento pode levar à aplicação de multa e suspensão da possibilidade de celebração de novo instrumento de 180 a 540 dias, com prazo de decisão de 6 meses. As sanções também podem ser convertidas em plano de ações compensatórias.
O terceiro instrumento é o Termo de Cooperação Cultural. Promove ações de interesse recíproco sem repasse de recursos, com compromissos mútuos. A depender da complexidade, exige um plano de trabalho e um Relatório de Cooperação Cultural para demonstrar o cumprimento dos compromissos. Não há previsão expressa de penalidades em caso de descumprimento, o que pode gerar um ponto de atenção para a fiscalização.
O último é o Termo de Ocupação Cultural. Ele permite a utilização de equipamentos públicos para ações culturais sem repasse de recursos. Não prevê hipótese específica de prestação de contas, mas os artigos de 31 a 34 da lei determinam que a administração pública adote rotinas e atividades de monitoramento e controle, fundamentadas em estudo de gestão de riscos, para a implementação de todo o regime de fomento.
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A Lei 14.903/2024, portanto, marca um novo capítulo para o fomento cultural no Brasil, exigindo de empresas e agentes culturais não apenas a compreensão de seus mecanismos, mas uma postura proativa em relação à transparência e à responsabilidade. Com novos fluxos de recursos e instrumentos de fomento, a adequação a práticas de boa governança e compliance é mais do que uma obrigação legal; é um diferencial estratégico que garante a segurança jurídica, otimiza investimentos e fortalece a reputação no setor[1].
Este artigo buscou oferecer um panorama inicial dessa nova realidade. Nos próximos textos sobre o tema, serão aprofundas as perspectivas do compliance anticorrupção, detalhando os riscos e as melhores práticas para mitigá-los; e do direito concorrencial.
[1] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/06/28/marco-regulatorio-do-fomento-a-cultura-e-sancionado, https://www.camara.leg.br/noticias/1077922-nova-lei-estabelece-o-marco-regulatorio-do-fomento-a-cultura/ e https://www.gov.br/cultura/pt-br/assuntos/noticias/marco-regulatorio-do-fomento-a-cultura-e-sancionado-pelo-presidente-lula