Em março de 2015, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei 13.104/2015, estabelecendo o feminicídio como qualificadora do crime de homicídio doloso. A legislação alterou o Código Penal, agravando a pena do homicídio comum nos casos de assassinatos de mulheres especificamente associados à “condição de sexo feminino”. Esses casos passaram a ser considerados nos contextos de violência intrafamiliar e de menosprezo ou discriminação à condição de ser mulher.
O termo “condição do sexo feminino” foi inserido pelo então deputado Eduardo Cunha, visando excluir as mulheres trans da política, o que não estava previsto na proposta original.
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Essa decisão trouxe uma importante dualidade para a implementação da legislação. Por um lado, apesar do obstáculo imposto, a jurisprudência brasileira incorporou as mortes de mulheres trans dentro da lógica do feminicídio, havendo, inclusive, discussões sobre o transfeminicídio. Por outro lado, o conceito nem sempre é aplicado dessa forma pelas polícias judiciárias, que, por vezes, utiliza o sexo biológico para a tipificação do crime.
Pacote Antifeminicídio e limitações da lógica punitivista
Quase uma década depois, a Lei 14.994/2024, conhecida como Pacote Antifeminicídio, transformou a qualificadora em um crime autônomo, com a maior pena prevista no Código Penal. A reforma também alterou a pena de outros instrumentos de enfrentamento à violência contra as mulheres, como a lesão corporal dolosa no contexto de violência doméstica.
A reforma legislativa destaca a relevância da questão, além da preocupação política em responder às demandas sociais, ressaltando a importância do debate na agenda pública. Essa relevância também pode ser verificada pelo fato de o feminicídio tramitar mais rápido no sistema de justiça criminal em comparação aos demais tipos de homicídio.
Contudo, chama atenção que o aumento do punitivismo em relação aos casos de feminicídio seja a única estratégia implementada, à medida que não há evidências científicas que o aumento da pena diminui a letalidade.
Em uma proposta de “zerar o feminicídio”, a única estratégia adotada foi a de aumentar a pena prevista, sem considerar a importância de políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres.
Diversos estudos sobre o tema demonstram limitações da estratégia adotada pelos legisladores. Esses estudos ressaltam a necessidade de implementar respostas em rede, levando a uma construção intersetorial, englobando políticas de assistência social, saúde, educação e segurança pública.
Nesse sentido, parte da literatura latino-americana discute o feminicídio através da lógica da violência estatal (Lagarde, 2004), argumentando que a negligência e a omissão do Estado em prevenir e proteger as mulheres contribui para essas mortes; ou seja, o aspecto político é adicionado ao conceito do feminicídio.
O feminicídio no contexto do sistema de justiça criminal
Para uma melhor compreensão da complexidade que perpassa o conceito de feminicídio, é necessário considerar, além de aspectos legislativos, a interpretação do termo no contexto do sistema de justiça criminal.
A literatura especializada tem chamado atenção para a forma como as polícias judiciárias têm utilizado crimes que ocorrem com vítimas do sexo feminino, mortas com o uso de armas brancas, dentro da casa e pelo parceiro íntimo, como um proxy para o feminicídio. Essa prática tem sido observada especialmente em casos nos quais os agentes identificam casos anteriores de violência contra essas vítimas.
Tais casos são documentados pelos policiais, militares ou civis, e, como muitas dessas ocorrências são flagrantes, a tramitação desses crimes tende a ser mais célere. Em alguns casos, o próprio autor do crime notifica a polícia, informando que se trata de uma morte acidental. Em outros casos, é comum haver testemunhas da dinâmica relacional violenta, que contribuem com a investigação.
Esses contextos de violência familiar que são utilizados como proxy pelas polícias, previstos como uma das duas hipóteses de feminicídio, são frequentemente chamados pelos agentes de “feminicídio típico” ou “normal”.
A forma como os policiais civis entendem o feminicídio tem um papel fundamental na lógica do sistema de justiça criminal. Esses agentes são os responsáveis pelo encaminhamento do crime ao Ministério Público, para que a instituição avalie a natureza da denúncia. Ou seja, o enquadramento dado por esses agentes influencia na forma como o crime é inserido no fluxo do sistema de justiça criminal.
Além desses casos de feminicídio serem frequentemente compreendidos como menos complexos, eles também são os mais comuns, uma vez que as estatísticas criminais no Brasil são feitas através da compilação dos registros policiais.
O feminicídio referente à condição de ser mulher
Entretanto, além dos contextos de violência familiar, utilizados pelas polícias como proxy para o feminicídio, a legislação prevê outra hipótese do crime, em contextos de menosprezo ou discriminação à condição de ser mulher.
Além de identificar que a morte de mulheres tende a ser relacionada com a lógica doméstica, a literatura aponta que mortes de pessoas do sexo feminino não costumam ser analisadas a partir de dinâmicas criminais mais amplas. Dessa forma, muitas vezes, a violência contra a mulher não é considerada uma questão da esfera da segurança pública.
Assim, é comum que mulheres mortas fora do contexto doméstico não sejam consideradas vítimas de feminicídio. Logo, apesar de ser o feminicídio ser uma questão pública, como destacam as recentes alterações legislativas, o crime ainda é frequentemente compreendido na esfera privada.
Entrevistas realizadas com agentes da segurança pública oferecem uma melhor compreensão sobre essa perspectiva. De acordo com essas entrevistas, é comum que esses profissionais não associem mulheres (no sentido biológico) com a criminalidade, em razão das regras impostas pelo crime organizado. Dessa maneira, ainda que a violência letal contra mulheres fora do contexto familiar seja associada à violência por razões relacionadas ao crime organizado, as circunstâncias desses crimes não costumam ser analisadas na lógica do crime de ódio contra as mulheres.
Estudos recentes têm ressaltado a importância de compreender e analisar o feminicídio também a partir dessas dinâmicas, demonstrando a impossibilidade de inferir que a maior parte dessas mortes ocorram no ambiente doméstico (Nóbrega, 2020), ao contrário da forma com a qual a política tem sido implementada no Brasil.
Perspectivas para o enfrentamento adequado da violência contra as mulheres
Uma década após a inserção do feminicídio no Código Penal brasileiro, continuamos diante de um cenário que não é enfrentado adequadamente.
A principal estratégia adotada pelo Estado brasileiro não visa prevenir que as mulheres morram, mas foca em punir os responsáveis por suas mortes, sem que seja possível estabelecer paralelos sobre quantas mulheres estariam sendo salvas por essas medidas.
Nesse cenário, é necessário retomar a formulação inicial do feminicídio pelas autoras latino-americanas: um crime político de Estado, que negligencia a vida de mulheres e não é capaz de dar respostas efetivas à violência sofrida.
A partir dessa lógica e de uma melhor compreensão dos aspectos introduzidos neste breve artigo, nesses dez anos da promulgação da Lei do Feminicídio, é fundamental que aprofundemos o debate em relação ao tema, para que possamos enfim avançar na implementação de políticas preventivas em relação à violência contra as mulheres.

