Aprovado no Senado na semana passada, o Projeto de Lei 2.159/2021 pretende instituir uma Lei Geral do Licenciamento Ambiental, alterando a atual fragmentação do arcabouço legal para o processo. Agora, o texto, que ganhou as redes como “PL da Devastação”, deve retornar à Câmara dos Deputados. Ao propor novos formatos de licenciamento, dispensas e padronizações, o PL propõe resolver o que seus defensores chamam de um cenário de insegurança jurídica generalizada. Mas, para especialistas ouvidos pelo JOTA, ele pode trocar uma insegurança por outra. “O sistema existe há mais de 40 anos e as suas discussões são as mesmas. Sem maturidade, boa-fé e espírito público, continuaremos andando em círculos, como temos feito até agora”, diz Paulo Bessa, consultor em Direito Ambiental e professor da Unirio.
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O sistema atual de licenciamento é regulado por um emaranhado de normas infralegais: resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), instruções normativas, portarias estaduais e regras municipais. A principal norma nacional ainda é a Resolução Conama 237/1997, que define os tipos de licença (prévia, de instalação e de operação) e os empreendimentos sujeitos ao licenciamento. Também estabelece critérios para exigência de Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto Ambiental (RIMA).
Além disso, as leis 140/2011, 9605/1998 e 12651/2012 também fazem parte do arcabouço para o licenciamento. A primeira define as competências da União, Estados, Distrito Federal e Municípios no licenciamento ambiental, enquanto a segunda estabelece as sanções penais e administrativas para condutas inadequadas. Já a última é o Novo Código Florestal Brasileiro, que trata da proteção da vegetação nativa e do licenciamento de empreendimentos em áreas rurais.
“São inúmeras leis, normas, portarias, decretos, enfim, um cardápio completo de normas tentando regular a proteção dos recursos naturais. Isso gera muita insegurança jurídica”, diz Paula Chaccur, head da área ambiental do CGM Advogados.
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Há ainda as normas estaduais e municipais. No estado de São Paulo, por exemplo, considerado um dos mais rígidos em termos de licenciamento ambiental, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB) avalia o porte do empreendimento, potencial poluidor, tipo de atividade e sensibilidade da localização. Já no Rio Grande do Sul, em 2020, as regras foram alteradas para permitir que empreendimentos obtenham licenças por simples declaração, sem análise técnica prévia.
Os diferentes processos tornam a espera pela licença, dependendo da localidade, maior ou menor. Em 2021, a média para liberação de licenças pela CETESB era de 139 dias, segundo divulgado por ela própria. Um levantamento feito pelo engenheiro Gabriel Augusto Nocera em 2016 mostrou que para processos de geração de energia a partir de fonte hidrelétrica, a obtenção da licença prévia podia levar 1016 dias no Paraná, 1826 em Santa Catarina e 2592 no Rio Grande do Sul.
A nível nacional, um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) em 2018 apontou que os processos para licenciamento de linhas de transmissão feitos pelo Ibama tinham prazo de 445 dias, enquanto para rodovias esse tempo caía para 240 dias. “O número de servidores disponíveis é inferior ao necessário para análise técnica e acompanhamento dos processos, o que impacta diretamente nos prazos de tramitação”, afirma o documento. Além disso, “empreendedores costumam apresentar estudos ambientais com baixa qualidade técnica, o que demanda diversas complementações e retrabalhos”.
Nos tribunais
No mês passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou o trecho do Código Ambiental Estadual do Rio Grande do Sul e definiu que apenas empreendimentos de baixo impacto podem usar o processo simplificado, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6618 – apenas um dos exemplos de judicialização das normas ambientais no país. Segundo o painel Sirenejud, ferramenta do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que monitora ações ambientais, há mais de 5 mil casos sobre concessão ou revogação de licença ambiental pendentes na Justiça Estadual, Federal e STJ. Mil deles são casos novos, protocolados em 2025.
Muitos deles versam sobre conflitos de competência. A Constituição Federal (art. 23 e art. 225) estabelece que União, Estados, DF e Municípios têm competência concorrente para legislar sobre meio ambiente. O problema geralmente surge quando normas estaduais flexibilizam exigências, indo além do que a norma geral permite, o que pode ser considerado inconstitucional, como no caso do RS.
Além disso, segundo o relatório do TCU, alguns estados brasileiros vêm ampliando os conceitos de “baixo impacto” e “utilidade pública” para permitir intervenções em Áreas de Preservação Permanente (APPs), em desacordo com o que estabelece o Código Florestal e as resoluções do Conama. Entre os exemplos citados está Minas Gerais, onde o conceito de utilidade pública foi ampliado sem a devida justificativa técnica, segundo o TCU, permitindo a supressão de vegetação em APPs com base em critérios genéricos. Também Rondônia tem dispositivos legais estaduais que autorizam construções em áreas protegidas de forma que o TCU considera incompatível com a legislação federal.
De acordo com o artigo 7º da LC 140/2011, cabe à União licenciar empreendimentos que afetem, por exemplo, Terras Indígenas, Territórios Quilombolas, Unidades de Conservação federais, rios interestaduais ou marinhos. Já os estados devem licenciar as atividades com impacto local, e os municípios, aquelas de impacto restrito ao território municipal.
A lei inclusive já foi ao Supremo. Em 2023, o STF julgou parcialmente procedente a ADI 4.757, conferindo interpretação conforme à Constituição a dispositivos dessa legislação. A Corte determinou que a prevalência do auto de infração lavrado pelo órgão originalmente competente para o licenciamento ambiental não exclui a atuação supletiva de outro ente federado, desde que comprovada omissão ou insuficiência na tutela fiscalizatória.
No entanto, em vários casos, órgãos estaduais de meio ambiente têm emitido licenças ambientais para projetos localizados em áreas que, de acordo com a Constituição e a LC 140, deveriam ser licenciados pela União, por meio do Ibama ou com manifestação do ICMBio, no caso de unidades de conservação. A ausência de consulta ou anuência prévia desses órgãos federais têm levado o Ministério Público e organizações da sociedade civil a questionar judicialmente a validade dessas licenças.
Por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou a licença ambiental concedida por um órgão estadual para a construção de uma usina hidrelétrica no Paraná, justamente por se tratar de um empreendimento em rio de domínio da União. No julgamento do REsp 1.276.889/PR, a Corte entendeu que houve invasão de competência da União, consolidando o entendimento de que, em casos de impacto sobre bens federais, o licenciamento deve ser conduzido pelo Ibama.
Além de comprometer a segurança jurídica, essa fragmentação institucional cria riscos ambientais. Segundo o TCU, essa atuação descoordenada entre os entes da federação compromete a eficácia da política ambiental nacional. “Os governos têm pouco ou nenhum compromisso com a proteção ambiental. Basta ver o orçamento das agências ambientais federais, estaduais e municipais”, diz Paulo Bessa.
Na área rural, um dos principais entraves ao licenciamento ambiental é a exigência de regularidade fundiária a partir do Cadastro Ambiental Rural (CAR), instituído pelo Código Florestal de 2012. O sistema de análise e validação dos cadastros está paralisado ou avariado em diversos estados, o que compromete a capacidade de empréstimos, financiamentos e licenciamentos.
Segundo Paula Chaccur, há casos em que empresas estão sujeitas a licenciamento municipal e o processo da localidade pede pelo CAR. “Mas quem homologa isso é o órgão estadual. E o órgão estadual não está homologando”, diz. Segundo o Painel da Regularização Ambiental, há mais de 6,7 milhões de CARs aguardando análise das autoridades.
O que diz o PL
O emaranhado atual tem ensejado argumentos dos defensores do PL em discussão. O senador Alan Rick (União-AC), por exemplo, afirmou em pronunciamento no Plenário que a nova legislação “moderniza as ações dos órgãos ambientais e garante segurança jurídica”. Uma das propostas para isso no texto é criar diferentes regimes de licenciamento: a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), voltada às atividades de chamado baixo impacto, que ainda não foram definidas; a Licença por Conformidade; e a possibilidade de dispensa total para atividades consideradas de impacto irrelevante.
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Para Maurício Guetta, advogado do Instituto Socioambiental, o modelo da LAC é frágil e inconstitucional. “A LAC não é uma licença ambiental, porque não tem análise prévia do órgão ambiental. O interessado preenche informações de forma autodeclaratória e recebe uma licença automática. Isso vai ser aplicado à maioria dos empreendimentos no Brasil.”
Outro ponto sensível é o conceito de “empreendimento estratégico”, que poderá ser licenciado sob regime especial. Incluído nas emendas do Senado, o texto não explicita que tipo de projetos se enquadram nessa categoria. “Esse conceito está bem vago ainda. Precisamos de uma definição melhor, senão vai ter muita judicialização”, diz Paula, do CGM Advogados. “Também precisa haver uma definição concreta do que é porte baixo, médio, impacto pequeno. Se não houver isso, vamos sair de uma insegurança para outra.”
Além disso, o PL dispensa expressamente o licenciamento para atividades como manutenção de estradas, obras emergenciais e atividades agropecuárias tradicionais. No entanto, o texto não especifica claramente o que configura “emergência” nem estabelece critérios para a “tradição” da atividade. O projeto também não fala sobre territórios indígenas não homologados (cerca de 30%) e territórios quilombolas não titulados (90%). “São áreas de segurança climática. Simplesmente desconsiderar isso é uma violação à Constituição”, diz Guetta.
O projeto também não prevê, em casos de empreendimentos que afetam bens da União, como rios federais, Terras Indígenas e unidades de conservação federais, se o Ibama ou o ICMBio devem ser obrigatoriamente ouvidos, o que contraria o entendimento consolidado pelo STJ e pelo próprio TCU.
“A lei dá um cheque em branco para que estados e municípios definam se licenciam ou não uma atividade. Isso pode mudar conforme cada governo de ocasião”, diz Guetta. “Vai gerar aumento da judicialização, com questionamentos tanto ao texto da lei quanto aos empreendimentos”, acrescenta. “Não é porque temos um caminhão com problema de suspensão que vamos jogar o caminhão fora. Deveríamos consertar a suspensão”.