No início deste mês, completam-se 15 anos da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), sancionada tendo como uma de suas metas o encerramento de todos os lixões do Brasil até 2014. Embora a operação dos lixões esteja oficialmente proibida desde 2 de agosto de 2024, com o reforço do Novo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei 14.026/2020), cerca de 3 mil lixões ainda operam ilegalmente. Esse descarte inadequado, além de contrariar a legislação, ameaça os compromissos climáticos assumidos no cenário internacional.
A poucos meses da COP30, evento que acontece em novembro deste ano, em Belém (PA), a situação do manejo de resíduos sólidos no país se evidencia. Os múltiplos entraves, sejam políticos, econômicos ou jurídicos, impactam na gestão integrada desses resíduos, em particular quando o assunto são os pequenos e médios municípios.
No horizonte, há caminhos viáveis para reverter essa situação. Segundo um estudo da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema), a infraestrutura já existente de aterros sanitários licenciados pode auxiliar na destinação correta dos resíduos sólidos de centenas de municípios. Essa solução é vista como eficiente, econômica e sustentável para melhorar a destinação do lixo no Brasil.
O que dificulta a prática da PNRS?
Apesar dos 15 anos de implementação da PNRS, a realidade brasileira é ainda marcada por milhares de lixões em plena operação. O Novo Marco reforçou essa política, com a proibição de lixões e estabeleceu um teto até 2024 para o encerramento desses espaços de manejo incorreto de resíduos sólidos. No entanto, permanecem entraves para o pleno seguimento das normas, desde estagnação política a falhas estruturais e jurídicas.
Para Fabricio Soler, advogado especialista em direito dos resíduos e presidente do Instituto PNRS, o principal obstáculo é a ausência de compromisso efetivo das gestões municipais com a eliminação das áreas de descarte a céu aberto. “Esse é um tema fundamentalmente de responsabilidade dos gestores locais. Há uma falta de comprometimento com a pauta dos resíduos e, por consequência, com o saneamento e a saúde pública”, afirma.
Outro ponto crítico, segundo ele, é a ausência de sustentabilidade econômico-financeira do serviço: “Milhares de municípios ainda não efetivam a cobrança de taxa ou tarifa pelo manejo dos resíduos, o que compromete toda a cadeia. Sem recurso postergam fechamento de lixões, implantação de coleta seletiva e ações de valorização de catadores e catadoras de materiais recicláveis”, diz.
Soler ainda analisa como a existência de lixões também gera impactos socioeconômicos para a saúde pública. Esse ponto de vista é endossado por Pedro Maranhão, presidente da Abrema. O executivo destaca que o manejo incorreto dos resíduos sólidos potencializa a contaminação de solo, água e ar da região em que o lixão está localizado.
“Quando esses vetores contaminantes entram em contato com a população, há um grande perigo de proliferação de doenças infectocontagiosas e os impactos na saúde da população acabam custando mais caro que o investimento necessário para dar uma destinação ambientalmente adequada aos resíduos”, informa.
Do ponto de vista jurídico, o advogado Édis Milaré identifica quatro gargalos para o pleno funcionamento da PNRS: a persistência dos lixões, a ausência ou inadequação de planos municipais de resíduos, a fragilidade da responsabilidade compartilhada e a exclusão dos catadores da gestão formal. “Sem o Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos, compromete-se a fiscalização, a aplicação de recursos e o acesso a financiamentos federais e estaduais, cujo repasse de verbas é condicionado à existência e conformidade dos planos”, explica.
Por outro lado, a logística reversa, considerada pela legislação um dos pilares da responsabilidade compartilhada, também é um desafio. “Se mal implementada, o resultado prático acaba sendo a transferência do ônus da destinação de resíduos para o poder público municipal. Adicionalmente, a deficiente coordenação entre os entes federados e a falta de incentivo efetivo para a formação de consórcios intermunicipais acabam por agravar o problema”, alerta Milaré.
De acordo com Maranhão, da Abrema, há um histórico de descaso com o saneamento básico, uma das explicações para o atraso no setor: “Saneamento nunca foi uma prioridade para os gestores, sempre atrás de obras com maior visibilidade política”, critica.
O advogado e parecerista Ingo Sarlet acredita que a estagnação da PNRS representa uma violação direta aos múltiplos direitos fundamentais garantidos pela Constituição. “A gestão de resíduos, mediante o tratamento ambientalmente adequado, é um serviço essencial e de alto interesse social, por estar diretamente relacionada ao direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, à saúde e ao saneamento básico”, destaca.
Segundo ele, o problema não está centrado na ausência de leis, mas sim na omissão dos gestores e na falta de articulação federativa. “Existe um significativo ferramental processual para que a sociedade e os agentes públicos cobrem judicialmente as medidas cabíveis”
Aproveitamento dos aterros sanitários
Dados da Abrema evidenciam que são geradas cerca de 77 milhões de toneladas de lixo por ano. Do total, por volta de 40% têm destinação incorreta principalmente para depósitos irregulares. Embora exista muito trabalho a ser feito, um novo estudo da mesma instituição mostra que a infraestrutura já disponível de aterros sanitários seria suficiente para encerrar a operação de centenas de lixões e avançar muito no manejo adequado dos resíduos sólidos produzidos no país.
Uma das possibilidades a curto prazo para erradicar esses locais está na regionalização da destinação final do lixo aproveitando esses aterros sanitários já licenciados e operacionais. Segundo o presidente da Abrema, existe uma capacidade ociosa significativa nesses empreendimentos, sobretudo em estados como a Bahia.
De acordo com Maranhão, o novo levantamento estima mais de 200 municípios que poderiam estar redirecionando seus resíduos a aterros existentes – sem precisar de novos investimentos em infraestrutura. “Hoje, o Brasil vive uma situação medieval com quase 3 mil lixões. E muitos desses estão a poucos quilômetros de aterros sanitários licenciados, que poderiam ser usados ao adotar uma logística simples”, afirma.
O executivo explica que um único aterro sanitário pode atender dezenas de municípios. “Neste estudo na Bahia, vimos que em um raio de 50 km de um único aterro, há mais de 40 cidades com lixões. O caro, na verdade, é manter a situação como está. Os prefeitos não consideram o custo em saúde pública, que inclui doenças como diarreia, alergias e infecções respiratórias”, ressalta.
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A dificuldade, segundo Maranhão, está na técnica de operação desses aterros. “Muitos municípios abandonaram os aterros sanitários porque não conseguiam operar sozinhos. Os que mantêm o serviço foram os que fizeram concessão com a iniciativa privada”, diz. De acordo com ele, mais de 90% dos aterros sanitários regionais são mantidos pela iniciativa privada.
Essa visão é compartilhada por Soler, do Instituto PNRS. Para ele, o argumento do alto custo para fechar lixões não se sustenta. “A regionalização já acontece na prática por meio de aterros sanitários que recebem rejeitos e resíduos de vários municípios do entorno”, analisa.
Para o jurista Édis Milaré, a gestão compartilhada também se apresenta enquanto uma solução eficaz. “Por experiência prática é possível afirmar que a busca por soluções autônomas e isoladas para a gestão de aterros sanitários constitui-se um equívoco de ordem logística e financeira. A via de maior eficácia para a superação de tal impasse repousa, inequivocamente, na adoção da gestão consorciada”, observa.
Milaré pontua que essa opção materializa o federalismo cooperativo previsto pela Constituição Federal de 1988, de forma a permitir ganhos de escala. O advogado ainda explica que pequenos municípios têm dificuldade de operar estruturas complexas sozinhos, um dos motivos que facilitam a manutenção dos depósitos de resíduos a céu aberto.
Essa perspectiva também é defendida pelo jurista Ingo Sarlet, que aponta a importância dos consórcios intermunicipais como instrumentos jurídicos fundamentais para viabilizar soluções regionais. “Consórcios públicos intermunicipais se revelam como sendo um instrumento potencialmente poderoso e adequado para atender à prestação regionalizada dos serviços de saneamento, permitindo ganhos de escala e a viabilidade técnica e econômico-financeira da gestão dos resíduos”, explica.
Para Sarlet, esse modelo representa a aplicação prática do federalismo cooperativo previsto na Constituição de 1988: “A proteção ao meio ambiente é uma competência comum, que clama por atuação sinérgica. A gestão de resíduos sob a lógica consorciada converte um dos mais graves passivos ambientais do país em um paradigma de cooperação federativa e efetividade jurídica.”
COP30 e a credibilidade ambiental do Brasil
Daqui a alguns meses acontece a COP30 no Brasil, sendo uma importante vitrine internacional do avanço na agenda de resíduos sólidos. Para os especialistas, há um risco de enfrentar constrangimentos diplomáticos caso não prossiga com urgência para a eliminação dos lixões.
“Como se sabe, na COP29 o Brasil assinou a Declaração de Redução de Metano de Resíduos Orgânicos, mas, internamente, segue enviando grande quantidade de resíduos para lixões. É, portanto, uma contradição, principalmente considerando que mais de 50% dos resíduos sólidos urbanos são orgânicos que emitem metano”, analisa Milaré.
Ainda que o país não esteja sujeito a sanções internacionais diretas pelo descumprimento dessa política, há um risco de perda de protagonismo ambiental em esfera internacional – e “fragiliza sua liderança na COP30”, diz.
Maranhão, da Abrema, também enxerga o evento como um marco para acelerar a agenda nacional de destinação de resíduos sólidos. “Na COP de Dubai, o Brasil foi questionado sobre os lixões. Encerrar esses lixões é uma medida que tem efeito duplo: reduz a emissão de gases de efeito estufa e permite que os resíduos depositados nos aterros sanitários sejam tratados e transformados em energia renovável, com produção de biogás e biometano”, explica.
Para ele, esse momento é estratégico para o país, uma vez que o aproveitamento dos resíduos sólidos é uma maneira de viabilizar uma transição energética sustentável, com o uso dos produtos resultantes dos aterros sanitários. “Com o biometano, podemos substituir o gás fóssil em setores como o transporte e a indústria. Isso tem impacto direto nas metas de descarbonização da economia”, pontua.
Já Soler, do Instituto PNRS, reforça a necessidade de aproveitar o momento da COP30 como uma alavanca para mudanças concretas. “Estamos tratando do principal evento internacional de sustentabilidade do mundo sendo realizado no Brasil. E o país ainda convive com milhares de lixões”, avalia. “É fundamental que esse tema ganhe luz, que seja tratado como prioridade e possa impulsionar o cumprimento da regionalização dos resíduos sólidos por aterros sanitários, eliminando, de um vez por todas, os lixões do território nacional”, diz.
Ingo Sarlet reforça que o Brasil, ao buscar protagonismo climático, precisa demonstrar coerência entre o discurso e a prática. Ele alerta que o próprio Supremo Tribunal Federal já reconheceu os lixões como inconstitucionais e ofensivos a direitos fundamentais. “O STF, na ADC 42 e ADIs conexas, deixou claro que os assim chamados lixões, quando irregulares, representam violação a princípios constitucionais e direitos fundamentais, como é o caso do direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado”, finaliza.