As startups de benefícios estão para as ticketeiras assim como as fintechs estão para os bancos tradicionais. Pequenas empresas, numa tempestade perfeita de tecnologia e regulamentação favorável, trouxeram disrupção aos mercados, tanto o de benefícios quanto o financeiro, que tinham acordos consolidados por muito tempo. No caso do mercado de benefícios, o status quo envolvia o rebate: descontos dados por empresas de benefícios para conseguir grandes contas.
Com mudanças trazidas pela reforma trabalhista de 2017, as startups, como Caju, Flash e Swile, puderam competir por essas contas – pelo menos na teoria. Na prática, o rebate tomou novas formas e criou um mercado desigual, diz Karen Fletcher, head de legal na Caju, em entrevista exclusiva ao JOTA.
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Em reposta, uma portaria de outubro do Ministério do Trabalho e Emprego reforçou as mudanças nesse sentido. A Portaria 1.707 regulamentou as mudanças previstas no Decreto 10.854 /2021, vedando expressamente as beneficiárias do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) de utilizarem descontos ou benefícios não relacionados com a saúde e segurança alimentar. As companhias que não respeitarem as regras ficam sujeitas a multas de até R$ 50 mil, e até exclusão do PAT.
Em entrevista ao JOTA, concedida no final de 2024, Karen Fletcher, head de legal da Caju, disse acreditar que, com as novas regras, o mercado de benefícios está passando por uma transformação histórica. “Nos últimos anos, vimos grandes avanços regulatórios e tecnológicos que abriram espaço para novas empresas e ideias. O mercado melhorou muito, e ainda pode muito mais. Ainda há desafios, mas estamos no caminho certo. Acredito que, com o tempo, veremos um mercado mais transparente, competitivo e eficiente. O futuro é o arranjo aberto.”
Fletcher falou sobre as expectativas para o mercado depois de Portaria do ministério do Trabalho em outubro, as próximas prioridades de regulamentação do setor e mais. Confira:
O que o rebate significa para o mercado de benefícios?
Não tem como falar de rebate sem falar sobre o mercado de benefícios. Lá atrás, o PAT, o Programa de Alimentação do Trabalhador, foi criado em 1976 como uma política pública. Na época, era voltado para trabalhadores de fábrica que estavam malnutridos. O governo, então, criou um incentivo fiscal, um desconto no Imposto de Renda, para que as empresas pudessem oferecer alimentação de qualidade. O objetivo era garantir a qualidade de vida e o bem-estar do trabalhador, e, claro, melhorar o rendimento. Só que, de 1976 até agora, as coisas mudaram muito.
Chegou um ponto, nos anos 2000, em que já não havia tanta clareza. Todo mundo conhecia o PAT do jeito que ele era no início, mas surgiram dúvidas. Por exemplo: e as empresas que não oferecem benefícios pelo PAT? O dinheiro que elas dão como alimentação ou refeição também não é benefício? E, se for, esse valor estaria sujeito a encargos trabalhistas e previdenciários. Essa era a grande discussão, tem todos esses desdobramentos.
Com a reforma trabalhista do governo Temer, veio um avanço importante. Além de manter o PAT, foi formalizado na CLT o conceito novo de auxílio-alimentação. Isso foi muito importante porque trouxe clareza para o mercado. As empresas já ofereciam benefícios antes disso, mas havia uma incerteza: aquilo seria questionado no futuro? Dentro do PAT, havia segurança jurídica, mas fora dele, ficavam dúvidas.
A reforma trabalhista ajudou a deixar claro que as empresas tinham duas opções. Elas podiam continuar no PAT, se quisessem aproveitar o incentivo fiscal, ou podiam oferecer o benefício com base na CLT, sem depender do PAT. E, além disso, a CLT foi detalhada em artigos como o 457 e o 458. Esses artigos explicam tudo o que pode ser considerado benefício, e o mais importante: deixam claro que benefícios não são salário. Isso significa que os valores pagos como benefício não estão sujeitos a encargos trabalhistas e previdenciários. Esse ponto foi muito bom para o mercado, pois finalmente trouxe segurança.
Por que estou explicando tudo isso? Porque o funcionamento do PAT influenciava diretamente o mercado de vouchers. As grandes empresas de benefícios operavam em um modelo chamado “arranjo fechado”. Essas empresas emitiam os cartões, credenciavam os estabelecimentos, processavam as transações e gerenciavam o dinheiro. Elas controlavam todo o ciclo. Mas, nesse modelo, as taxas eram muito altas.
Essas taxas altas geravam problemas. Muitos pequenos estabelecimentos, como mercadinhos de bairro, não aceitavam esses cartões porque a taxa era exorbitante. Para grandes redes, era mais fácil negociar, mas o pequeno comerciante acabava ficando de fora. E isso prejudicava também os trabalhadores, que tinham menos opções para usar seus benefícios.
Por outro lado, essas taxas altas eram o que sustentava o sistema de rebate. As empresas de voucher cobravam taxas altas e usavam esse dinheiro para oferecer descontos aos clientes corporativos. Por exemplo, uma empresa contratava um R$ 1 milhão em benefícios, e a operadora devolvia R$ 50 mil ou R$ 100 mil como rebate. Quem oferecia o maior rebate acabava ganhando a conta, independentemente da qualidade do serviço.
Além disso, existia o pós-pagamento. Por exemplo, as operadoras ofereciam o benefício para os colaboradores em janeiro, mas as empresas só precisavam pagar a fatura em abril. Esse modelo só era possível porque as receitas do arranjo fechado sustentavam essas condições.
Como esse cenário impactava cada um dos players do mercado?
Os comerciantes, especialmente os pequenos, foram os maiores prejudicados pelo modelo antigo. Muitos deles simplesmente não podiam aceitar os cartões de arranjo fechado por causa das altas taxas. Para eles, o arranjo aberto é extremamente positivo, porque as taxas são muito mais baixas. Além disso, com o arranjo aberto, a aceitação é muito maior, o que beneficia tanto os comerciantes quanto os trabalhadores.
As credenciadoras de máquinas de cartão também são a favor do arranjo aberto, porque isso aumenta a demanda pelos seus serviços. No arranjo fechado, as operadoras controlavam todo o ciclo, o que limitava as oportunidades para as credenciadoras. Já no arranjo aberto, elas podem participar do processo e ganhar com as transações.
Para as empresas contratantes, as mudanças também são positivas. O RH, que antes tinha que lidar com as restrições dos arranjos fechados, agora tem mais liberdade para escolher provedores que ofereçam a melhor experiência para os colaboradores. Além disso, com a proibição dos rebates, o foco voltou para a qualidade do serviço, e não apenas para o preço.
Do ponto de vista do colaborador, as mudanças foram muito importantes. Antes, ele tinha poucas opções de onde usar o benefício. Em muitos casos, ele acabava vendendo o saldo do cartão com deságio de 20% ou 30% para poder usar o dinheiro em outro lugar. Isso era uma perda enorme para o trabalhador. Agora, com o arranjo aberto, ele pode usar o benefício em praticamente qualquer lugar, o que elimina essa prática prejudicial.
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Quando isso começou a se transformar?
Com a reforma trabalhista e o avanço dos meios de pagamento, esse modelo começou a mudar. A reforma formalizou o auxílio-alimentação e deixou claro que ele não precisava ser oferecido exclusivamente em arranjos fechados. Isso abriu espaço para novas empresas entrarem no mercado. Surgiram empresas como a Caju, que começaram a operar com arranjos abertos. Isso foi uma grande transformação.
Nos arranjos abertos, os cartões funcionam como cartões de crédito tradicionais. Eles podem ser usados em qualquer estabelecimento que aceite bandeiras como Visa ou Mastercard. Isso melhorou muito a experiência do colaborador, porque ele passou a ter muito mais opções de onde usar seu benefício.
Mas também tem segurança para as empresas, não é como se você pudesse pegar o saldo de alimentação e gastar na Zara, por exemplo. Existe tecnologia para garantir que o benefício seja usado para o fim correto. No caso da Caju, por exemplo, existe um sistema chamado “autorizador”. Esse sistema verifica, em tempo real, se há saldo na categoria correta. Então, se você tenta usar o saldo de alimentação para outra finalidade, a transação é recusada. Isso dá segurança para as empresas de que o benefício está sendo usado como deveria, sem se transformar em salário.
Outro ponto importante é o custo. Nos arranjos abertos, as taxas cobradas dos comerciantes são muito mais baixas. Enquanto no arranjo fechado as taxas variam entre 6% e 12%, no arranjo aberto a taxa média é de 2%. Isso beneficia os pequenos comerciantes, que agora têm mais incentivo para aceitar os cartões, e também os trabalhadores, que passam a ter mais opções.
Só que não adianta permitir arranjo aberto, sendo que as empresas antigas vão estar competindo com esses descontos. Não vai ser uma competição em pé de igualdade. Elas vão continuar com uma remuneração muito mais alta, que permite a ela usar essas formas de negociar. E para essas entrantes, só privilegiar a experiência dos trabalhadores não é suficiente para competir. Quem oferecia o maior rebate ganhava a conta, e isso prejudicava as empresas menores, que não conseguiam.
E isso forçou o questionamento dos rebates?
Em 2021, o governo publicou o Decreto 10.854, que proibiu a prática de rebates e pós-pagamento no mercado de benefícios, com um prazo para adaptação a isso. Essa foi uma mudança importante, porque trouxe mais equilíbrio para o mercado. Do ponto de vista concorrencial, foi uma baita abertura de mercado. Mas, na prática, sabemos que não é uma mudança que acontece rapidamente. Na Caju, por exemplo, tivemos que esperar até maio de 2023, quando esses prazos de adaptação terminaram e o mercado realmente começou a mudar.
Para nós, essa mudança foi muito importante, porque antes as empresas que usavam o PAT só contratavam arranjos fechados por conta do incentivo fiscal. A Caju cresceu muito atendendo empresas menores que não estavam no PAT, mas essa virada de chave nos permitiu começar a ser considerados também por empresas grandes. Antes, não éramos nem cogitados. Hoje, atendemos empresas de todos os portes, e isso foi um marco para a nossa evolução.
No entanto, mesmo com a proibição, algumas empresas começaram a buscar brechas. A redação do decreto não foi das melhores – dizia que qualquer subsídio era proibido, exceto se relacionado à saúde e à segurança alimentar do trabalhador. Alguns players foram criativos, e passaram a oferecer descontos disfarçados de benefícios relacionados à saúde, como academias ou planos odontológicos. Em outros casos, pagavam boletos de fornecedores para os clientes, o que também é uma forma de rebate disfarçado. Você não está dando desconto na fatura, mas é tão errado quanto.
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Em 2023, o Decreto 11.678 foi publicado para deixar tudo ainda mais claro. Ele exigiu que qualquer benefício concedido estivesse diretamente relacionado a um programa de alimentação monitorado pela empresa. Mas, mesmo assim, o mercado ainda tentava argumentar que academias e até procedimentos estéticos tinham relação com alimentação.
Aí veio a portaria mais recente, a 1707, publicada em outubro pelo Ministério do Trabalho, que deixou absolutamente claro o que é proibido. Ela especificou que práticas como pagamento de academias, planos de saúde e outras categorias não podem ser consideradas benefícios relacionados à alimentação. Essa portaria acabou com as brechas que ainda existiam. A proibição, se não estava clara antes, ficou escancarada.
Depois de tantas regulamentações, o que indica que agora as novas regras vão ser efetivamente operacionalizadas? O que muda na prática?
Temos expectativa de que o mercado respeite o que já está sendo posto há tanto tempo. É claro que há diferentes reações. Mas esse esforço regulatório não foi por acaso. Foi o resultado de muita conversa com o Ministério do Trabalho e outros órgãos. O Ministério tem demonstrado um compromisso forte em garantir que as regras sejam cumpridas.
Desde que cheguei na Caju, sempre tivemos uma postura de abertura e colaboração. Lembro que, logo no início, nosso fundador me disse: “Vamos falar com a Casa Civil e mostrar nosso produto.” Na época, a Caju era uma empresa pequena, com 50 pessoas, e eu achei que seria impossível conseguir espaço para conversar com o governo. Mas ele mandou um e-mail, pediu a agenda, e a reunião foi marcada. Levamos nosso aplicativo, mostramos como funcionava, e isso foi uma grande quebra de paradigma para mim.
Eu vinha de empresas maiores, esse tipo de acesso parecia inviável, mas ali percebi que havia espaço para diálogo, mesmo para empresas pequenas. Isso me mostrou que o governo estava interessado em ouvir, entender o mercado e buscar soluções. Hoje, vejo que esse diálogo foi fundamental para as mudanças que estão acontecendo no mercado.
Além disso, o Ministério também aumentou o número de auditores fiscais para intensificar a fiscalização. Recentemente, foram contratados 900 novos auditores, e eles estão sendo treinados para fiscalizar o PAT. Isso é muito importante, porque a fiscalização vai além de verificar questões trabalhistas tradicionais. Agora, sempre que um auditor visita uma empresa, ele também deve verificar o cumprimento das regras do PAT.
Voltando ao tema da fiscalização, um ponto que acho relevante destacar é a quantidade de trabalho que os órgãos têm feito para garantir o cumprimento das regras. O Cade [Conselho Administrativo de Defesa Econômica], o Ministério do Trabalho… Por exemplo, eles oficiaram todas as empresas do mercado para apresentar seus contratos em julho de 2023. Tudo indica que esse foi o primeiro movimento para o Ministério ter acesso às condições contratuais e eventualmente identificar casos de rebate.
Na Caju, levantamos tudo rapidamente e enviamos os documentos no prazo. Mas a gente sabe que alguns players no mercado pegaram um termo padrão lá do site e mandaram, tem as condições comerciais que foram de fato acordadas. Sabemos que algumas empresas no mercado enviaram apenas o mínimo de informações ou documentos genéricos, para evitar exposição. Esse tipo de atitude pode atrasar o processo, mas estamos confiantes de que a fiscalização será mais eficiente com a entrada dos novos auditores.
Na Caju, estamos comprometidos em trabalhar junto com o regulador e os outros players do mercado para garantir que essas práticas sejam eliminadas. Somos uma das empresas mais interessadas em criar um ambiente de concorrência justa, porque acreditamos que isso beneficia a todos — desde os trabalhadores até as empresas contratantes e os comerciantes.
Sobre o tema do rebate, acho que agora está muito claro que ele é proibido. Durante muito tempo, houve dúvidas ou interpretações diferentes sobre o que era permitido e o que não era. Mas, com a última portaria, não há mais espaço para dúvidas. A expectativa agora é que o mercado realmente cumpra as regras e que o Ministério do Trabalho intensifique a fiscalização para garantir isso.
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Nós estamos otimistas com o futuro. O mercado de benefícios passou por uma grande transformação nos últimos anos, e essas mudanças abriram muitas oportunidades. Ainda estamos esperando para ver como será a atuação prática [das regras e dos auditores], mas a expectativa é alta.
Quais são as próximas prioridades para trazer mais segurança jurídica para o mercado de benefícios?
Agora, o próximo foco do Ministério deve ser regulamentar a interoperabilidade e a portabilidade. Esses temas são fundamentais para o futuro do mercado, mas são mais complexos, pois envolvem vários órgãos, como o Banco Central e o Ministério da Fazenda. Por exemplo, a interoperabilidade exige que os arranjos fechados e abertos consigam conversar entre si. Hoje, os arranjos abertos já conversam uns com os outros, mas forçar os arranjos fechados a se abrirem será um grande desafio.
Sobre a portabilidade, o Ministério está criando uma comissão para discutir o tema e elaborar um modelo viável. Isso ainda está em fase inicial, mas a expectativa é que o grupo de trabalho comece nos próximos meses. Sabemos que essa regulamentação será importante para garantir mais liberdade e transparência no mercado.
Como eu mencionei, a última reunião sobre portabilidade e interoperabilidade foi em novembro de 2023. O Ministério disse que nos enviaria um ofício com as diretrizes para a formação da comissão e os próximos passos. Ainda estamos aguardando essa comunicação, mas entendemos que o processo envolve muitas partes interessadas. A interoperabilidade e a portabilidade são temas sensíveis porque envolvem questões trabalhistas, regulatórias e financeiras.
Hoje, se um colaborador quiser transferir o saldo de um benefício para outro provedor, é praticamente impossível. Não há uma regulamentação que defina como esse processo deve funcionar. Um dos principais problemas é garantir a autenticidade da solicitação e evitar fraudes. Por exemplo, como validar que um colaborador está realmente pedindo a portabilidade e que o dinheiro será transferido corretamente para outro provedor? É algo que ainda precisa ser desenvolvido.
Além disso, há implicações práticas. Quando o trabalhador muda de provedor, o RH da empresa continua com o relacionamento com o provedor original. Isso pode gerar conflitos, especialmente em casos em que o novo provedor não tem a mesma estrutura ou relação com o RH. Tudo isso precisa ser resolvido para garantir uma transição suave para o colaborador e para a empresa.
Outra questão é a interoperabilidade entre arranjos fechados e abertos. Hoje, os arranjos abertos já funcionam bem entre si. Por exemplo, um cartão da Caju pode ser aceito em qualquer estabelecimento que trabalhe com as bandeiras Visa ou Mastercard. Mas os arranjos fechados não têm essa flexibilidade. Forçar os arranjos fechados a se integrarem com os abertos é um desafio técnico e regulatório, mas é essencial para criar um mercado mais justo.
Acredito que o mercado de benefícios está passando por uma transformação histórica. Nos últimos anos, vimos grandes avanços regulatórios e tecnológicos que abriram espaço para novas empresas e ideias. O mercado melhorou muito, e ainda pode muito mais. Ainda há desafios, mas estamos no caminho certo. Acredito que, com o tempo, veremos um mercado mais transparente, competitivo e eficiente. O futuro é o arranjo aberto.