O golpe segue em curso. A dúvida é se ele vai ser parcelado no Pix ou no cartão de crédito de bandeira dos EUA. Ou seja, mais importam os fatores domésticos ou as ações tramadas desde Washington para que o regime social-democrático legado pela Constituição de 1988 perca legitimidade de vez? A experiência do Brasil no século 20 sugere que são cinco os elementos necessários para subverter com sucesso uma ordem constitucional.
Um é externo: o apoio da potência hegemônica, neste caso Washington. Os demais são majoritariamente domésticos: respaldo na sociedade civil e da mídia hegemônica; participação de segmentos relevantes do PIB; apoio partidário e, por fim, suporte militar.
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Desde o retorno de Donald Trump à Casa Branca em janeiro passado, temia-se que o anteparo internacional que foi crucial para o reconhecimento da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) contra Jair Bolsonaro em 2022 fosse redirecionado a favor do golpismo de extrema direita. É o que aconteceu por meio das sanções impostas ao Brasil na forma de tarifas. A robustez das ameaças à democracia, porém, não é apenas externa.
Dos quatro cavaleiros domésticos do apocalipse democrático, hoje o bolsonarismo ironicamente apenas carece de apoio entre aqueles que nos últimos 100 anos lideraram as principais tentativas de ruptura constitucional: o topo da hierarquia das casernas tupiniquins. Por ora, generais de Exército e seus congêneres na Aeronáutica e Marinha parecem estar vacinados contra a tentação de se envolverem em disputas político-partidárias.
A grande incógnita é o que se passará entre as tropas caso haja uma nova intentona bolsonarista nas ruas tal como o que se desenrolou na praça dos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023. Nesse caso, as Forças Armadas, sob seu mandato constitucional, devem agir de modo a preservar os Poderes constituídos e a independência entre eles.
Outra questão que se avizinha é o que os estratos da base militar — inclusive das polícias estaduais — fará em tal cenário. Vão seguir os superiores, que, no nível federal, parecem rechaçar rupturas, ou vão aderir a marchas de civis radicalizados?
Aos céticos acerca da força bolsonarista na sociedade cabe lembrar que, não obstante todas as evidências da participação de Bolsonaro nas tentativas de golpe que o então presidente articulou no poder, ainda há quem o defenda nas mídias sociais e até mesmo nas ruas mesmo após o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) ter articulado o tarifaço trumpista que, salvo exceções, afetam desde a semana passada as exportações brasileiras para os EUA com uma tarifa de 50%.
Vamos aos números: o último ato bolsonarista na avenida Paulista, em 3 de agosto passado, reuniu entre 37,6 mil e 57,6 mil pessoas, segundo estimativas feitas respectivamente pela USP e pelo site Poder 360. Segundo a Quaest, 19% dão razão ao tarifaço. A maioria é formada por homens que ganham mais de cinco salários mínimos. Considerando o perfil étnico-racial desse estrato, é provável que boa parte deles sejam brancos. Por fim, 47% dos brasileiros, segundo o Datafolha, aprovam a revogação do visto americano de Alexandre de Moraes, contra 42% que se opõem à medida.
Para engrossar o caldo que pretende azedar a ordem democrática de vez, editoriais publicados por grupos de mídia influentes na última semana sugerem certa animosidade contra a disposição de Moraes em cercear o bolsonarismo nos limites da lei.
Quase que em uníssono os jornais conservadores que ainda influenciam a opinião pública apontaram exageros na decretação pelo ministro do STF da prisão domiciliar de Bolsonaro após ter aparecido via chamada online nas manifestações de 3 de agosto. As críticas ao magistrado, porém, ignoram que o ex-presidente tenta reiteradamente obstruir a Justiça para que não seja julgado e eventualmente condenado pelas tentativas de golpe que culminaram no 8 de janeiro.
Um cenário assim torna-se mais delicado caso governadores de direita que são presidenciáveis ponham seus policiais militares à serviço do golpismo. O silêncio da trupe formada por Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), Romeu Zema (Novo-MG), Ratinho Júnior (PSD-PR) e Ronaldo Caiado (União Brasil-GO) em relação aos parlamentares amotinados que ocuparam os plenários das casas legislativas nos primeiros dias de trabalho pós-recesso é eloquente ao revelar onde se situa a chamada direita moderada no atual contexto.
Deviam se lembrar que seus colegas Adhemar de Barros (SP), Carlos Lacerda (da antiga Guanabara) e Magalhães Pinto (MG) apoiaram o golpe de 1964 para serem cassados pelo regime posteriormente.
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Também causa espécie o empresariado que atribui a Lula o tarifaço de Trump, como se este também não tivesse penalizado com elevados impostos de importação parceiros governados pela extrema direita, como é o caso da Índia, que tem como primeiro-ministro o nacionalista hindu Narendra Modi.
Se ainda estão de pé, os dominós formados pela sociedade civil e mídia, partidos políticos e PIB balançam a favor da autocratização do país. Caminhamos para o primeiro golpe desde o início da República aparentemente sem participação militar. Quiçá os simpáticos à extrema direita da caserna já perceberam que, desta vez, podem assistir de camarote o governo dos EUA e seus aliados domésticos no Brasil fazerem o serviço sujo que em 1964 enterrou a democracia incompleta da Constituição de 1946.
A Carta de 1988 parece caminhar para a guilhotina também sob os intensos aplausos de autointitulados liberais que, na verdade, são como seus irmãos gêmeos de 61 anos atrás: em nome da liberdade, querem nos converter numa autocracia. Só passarão se a marcha da insensatez continuar sem que os patriotas de verdade reajam à altura.