A moratória da soja nasceu em 2006 como um compromisso privado entre grandes tradings internacionais e organizações não governamentais, sob a justificativa de coibir o desmatamento na Amazônia. Passadas quase duas décadas, o arranjo consolidou-se como requisito informal para acesso aos canais de comercialização dominados por conglomerados exportadores que concentram mais de 90% do mercado.
Não há lei ou decreto que a institua. Tampouco deliberação do Congresso Nacional ou de órgãos ambientais competentes. Ainda assim, a moratória tornou-se, na prática, um sistema paralelo de governança ambiental e territorial, impondo regras próprias de exclusão de produtores rurais — inclusive daqueles em plena conformidade com o Código Florestal.
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O aspecto concorrencial: cartel de compras?
Do ponto de vista da defesa da concorrência, a crítica é recorrente. Ao se coordenarem para excluir fornecedores que não atendam aos critérios da moratória, as tradings acabam criando um cartel de compras. A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Aprosoja-MT já levaram o tema ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), sustentando que a uniformização das práticas, sem fundamento legal, restringe a livre iniciativa e distorce a concorrência.
Os números dão dimensão do problema: apenas em Mato Grosso, estima-se que os prejuízos diretos ultrapassem R$ 20 bilhões por ano, com efeitos indiretos superiores a R$ 60 bilhões. Pequenos e médios produtores, com menor poder de barganha e acesso limitado a certificações privadas, são os mais atingidos.
A governança territorial privatizada
A moratória vai além da questão concorrencial. Ela criou um regime de governança territorial privatizada, no qual empresas multinacionais determinam onde se pode ou não produzir. Essa lógica interfere diretamente no uso e ocupação do solo, substituindo a regulação ambiental estatal por mecanismos privados de controle.
O resultado é paradoxal: produtores com áreas registradas no Cadastro Ambiental Rural (CAR), com reserva legal e Áreas de Preservação Permanente averbadas, podem ser barrados por critérios não previstos em lei. Ou seja, não basta estar em conformidade com o Código Florestal; é necessário atender a requisitos supranacionais, sem transparência ou controle público.
Código Florestal x moratória: a insegurança jurídica
O Brasil já dispõe de um dos marcos normativos ambientais mais restritivos do mundo. O Código Florestal de 2012 criou instrumentos robustos de regularização: CAR, Programas de Regularização Ambiental (PRA), reserva legal e APPs. O desafio é a execução: muitos CARs ainda não foram homologados, e a implementação dos PRAs segue lenta.
Nesse contexto, a moratória permanece como substituto precário da ação estatal. Em vez de cobrar a efetividade do Código Florestal, transfere-se o poder de regulação para conglomerados privados. O efeito é perverso: enfraquece-se a autoridade do Estado, deslegitima-se o ordenamento ambiental brasileiro e gera-se insegurança jurídica.
A insegurança é dupla. Para o produtor rural, que cumpre a lei mas é tratado como irregular, e para o próprio setor de commodities, que passa a depender de critérios voláteis, sem respaldo institucional. A retórica ambiental perde consistência quando se constata que a moratória incide apenas sobre a soja, ignorando culturas como milho e algodão na mesma área — seletividade que evidencia incoerência.
No plano internacional, a manutenção desse sistema projeta risco reputacional elevado. A mensagem transmitida é a de que o Brasil não confia no seu próprio marco normativo ambiental, transferindo soberania regulatória a grupos econômicos supranacionais.
Matrícula como serviço: o contraponto público
Enquanto a moratória privatiza a governança territorial, o Provimento CNJ 195/2025 aponta em sentido oposto. Ao reposicionar a matrícula imobiliária como serviço público contínuo e digital, integrado a sistemas como CAR, SIGEF e cadastros fiscais, o CNJ constrói uma infraestrutura pública de dados espaciais, auditável e transparente.
Essa reconceituação mostra que o caminho legítimo para compatibilizar produção agrícola e sustentabilidade não é a imposição de critérios privados, mas o fortalecimento de instrumentos estatais que assegurem regularidade fundiária e ambiental. A matrícula digital, ao tornar-se interoperável, permite identificar sobreposições, fiscalizar o cumprimento do Código Florestal e oferecer segurança jurídica tanto a produtores quanto a credores e compradores.
A moratória da soja pode ter cumprido, em seu início, um papel relevante de resposta ao desmatamento. Mas, hoje, consolidou-se como uma instância paralela de regulação territorial e concorrencial, sem legitimidade democrática e sem capacidade de gerar segurança jurídica.
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A saída não está em arranjos privados de governança, mas no fortalecimento do Código Florestal e da matrícula digital como serviço público, capazes de fornecer parâmetros transparentes e auditáveis de regularidade. Homologar os CARs, executar os PRAs e consolidar as bases registral e cadastral públicas é o caminho para aliar sustentabilidade real, competitividade e soberania regulatória.
O produtor que cumpre a lei não pode ser tratado como irregular. O Brasil precisa confiar na sua própria regulação territorial e ambiental — e não permitir que critérios privados, criados à margem da legislação nacional, ditem os rumos de uma das cadeias produtivas mais estratégicas do país.