Com retomada prevista para esta semana, o julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet no Supremo Tribunal Federal (STF), que hoje condiciona a responsabilização de plataformas digitais por publicações de usuários à existência de ordem judicial não cumprida, pode reverberar na carga de trabalho da Justiça.
Caso o STF decida substituí-lo por um regime de responsabilidade objetiva, no qual as plataformas seriam responsabilizadas independentemente de notificação prévia, algo defendido no voto do ministro Dias Toffoli, o impacto pode ser de até 754 mil novas ações judiciais entre 2025 e 2029 e um custo orçamentário de até R$ 777 milhões para o Poder Judiciário.
A conclusão é do estudo O Preço da Moderação, publicado pelo think tank Reglab, que analisa quatro cenários possíveis de aumento da litigância, a partir da combinação entre o grau de responsabilização a ser fixado pelo STF e a velocidade de propagação dos efeitos da decisão.
Apesar de robusta, a projeção é conservadora, segundo os autores. Isso porque considera um custo médio por processo com base em ações típicas de consumo, como atraso de voo ou cobrança indevida. “Vamos imaginar o caso de uma ofensa na internet. É uma ação muito mais complexa. O juiz vai demorar mais tempo para analisar os dois lados, pode haver perícia técnica, assessoria. A tendência é que o custo por ação seja maior”, diz Pedro Ramos, diretor do Reglab.
O julgamento no STF, que trata dos Temas 987 e 533, teve início em novembro de 2024 e conta, até agora, com votos dos ministros Dias Toffoli, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso. Segundo os pesquisadores, a tese final a ser fixada pela Corte precisa tratar não apenas da moderação de conteúdo em si, mas das questões processuais e dos incentivos criados pela mudança do regime de responsabilidade. Isso inclui temas como o ônus da prova, exigência de tentativa prévia de solução extrajudicial e definição de critérios objetivos para remoção de conteúdo.
“Parece haver uma confusão entre moderação de conteúdo e responsabilidade das plataformas. O julgamento é sobre responsabilidade. Mas os votos têm falado muito mais sobre o que vai ser moderado do que sobre como as plataformas serão responsabilizadas”, diz Ramos.
Outro ponto levantado pelo estudo é o risco de fomento a uma litigância abusiva, no caso da adoção de regras amplas e pouco moduladas. “Hoje existe uma indústria de indenização que se profissionalizou. A gente pode ter atores surgindo para fomentar ações em massa sobre o tema. Se isso vai ser feito de forma legítima ou não, é outra discussão. Mas o viés é pra cima: certamente vai haver incentivo à judicialização”, argumenta Ramos.
Cenários
“Tentamos olhar esses quatro cenários, do menos grave ao mais grave, e contextualizar dentro das possíveis decisões do STF. O cenário máximo é mais provável se a decisão caminhar por esse lado, da responsabilidade objetiva”, explica Ramos.
Há ainda a simulação de outros três desfechos possíveis, combinando diferentes graus de responsabilização com ritmos distintos de judicialização. No caso de o Supremo adotar a responsabilidade objetiva, porém com modulações ou critérios limitadores, como hipóteses restritas de incidência ou necessidade de tentativa prévia de solução extrajudicial, a projeção é de 584 mil ações em cinco anos, com custo de R$ 604 milhões.
Outros dois cenários partem da manutenção da responsabilidade subjetiva, mas divergem quanto ao ritmo de crescimento do contencioso. Em um deles, com crescimento leve e salvaguardas preservadas, a expectativa é de 158 mil novas ações e R$ 165 milhões em custos em 5 anos. Já em outro, que segue as linhas do voto intermediário do ministro Luís Roberto Barroso, haveria 243 mil ações e um impacto orçamentário de R$ 251 milhões em 5 anos, resultado da ampliação das hipóteses de notificação direta sem critérios objetivos nem limites ao dano moral presumido.
O estudo foi construído com base na técnica de controle sintético, utilizada em avaliações de políticas públicas.“A ideia é criar de maneira sintética um grupo de controle. No nosso caso, estimamos o que teria acontecido com o número de ações contra plataformas digitais se o Brasil nunca tivesse adotado o Marco Civil da Internet em 2014”, explica o pesquisador João Ricardo Costa Filho, um dos autores do estudo.
Para isso, os autores construíram uma “empresa sintética” com características semelhantes a plataformas como o Facebook, mas que operasse sob regras de responsabilidade objetiva, como ocorre com empresas de consumo, por exemplo. A partir disso, comparam a evolução real do número de ações judiciais contra plataformas (sob responsabilidade subjetiva) com o que teria ocorrido sob um modelo mais severo. Com base nessa diferença, o estudo estima o “efeito líquido” do artigo 19 e projeta os cenários.As projeções são feitas com modelos estatísticos de séries temporais, e os custos judiciais estimados com base em dados do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho da Justiça Federal.
Caminhos possíveis
“Os estudos mostram que a adoção de responsabilidade objetiva só aparece em países como China e Irã. Nenhuma das principais regulações modernas, como o Digital Services Act na Europa ou o Marco Civil brasileiro, adotou esse modelo. Todas mantêm a responsabilidade subjetiva, com diferentes graus de obrigações procedimentais”, diz Ramos.
O estudo também propõe como possibilidade um conjunto de medidas regulatórias que poderiam mitigar os efeitos colaterais de uma eventual flexibilização do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Entre elas, está a definição de hipóteses objetivas e limitadas para o uso do modelo de notice and takedown, de modo a evitar abusos na remoção de conteúdos e garantir segurança jurídica às plataformas.
Outra sugestão é a exigência de tentativa prévia de solução extrajudicial, como notificações formais ao provedor ou mediação, antes do ajuizamento de ações judiciais, medida já adotada em outros setores regulados, como o bancário e o de consumo. Os autores também mencionam a possibilidade de proibição expressa do reconhecimento automático de dano moral presumido, argumentando que esse tipo de presunção, se adotada, ampliaria de forma exponencial os custos judiciais e a litigância oportunista.
Além disso, o estudo sugere o fortalecimento de obrigações sistêmicas para as plataformas, como a adoção de protocolos de transparência, relatórios periódicos sobre moderação de conteúdo e diligência reforçada em contextos de risco democrático, como períodos eleitorais, inspirando-se em regulações como o Digital Services Act da União Europeia.