Abandono afetivo é a omissão voluntária, relevante e injustificada dos deveres parentais de cuidado, convivência, orientação e apoio psicoafetivo aos filhos, especialmente crianças e adolescentes. Não se exige amor — que é sentimento e não pode ser imposto —, mas o cumprimento do dever jurídico de cuidar, positivado no ordenamento. A Lei nº 15.240, de 28 de outubro de 2025, reconhece expressamente o abandono afetivo como ilícito civil, consolidando orientação jurisprudencial segundo a qual as regras gerais da responsabilidade civil incidem nas relações familiares, sem confusão com alimentos ou com medidas como a perda do poder familiar.
A responsabilidade civil por abandono afetivo estrutura-se nos elementos clássicos: conduta (ação ou omissão que viole o dever de cuidado), dano (moral e, quando cabível, material) e nexo causal. A omissão relevante consiste em não fazer o que a lei determina: ausência sistemática e injustificada de presença, proteção e orientação, com impacto deletério no desenvolvimento da personalidade do filho. O Superior Tribunal de Justiça, em precedente paradigmático, afirmou a juridicidade do pedido de compensação por danos morais por abandono afetivo, aplicando amplamente os arts. 186 e 927 do Código Civil às relações de família e afastando o argumento de que a obrigação alimentar ou a perda do poder familiar excluiriam a indenização. No caso, diante de prova robusta de abalo psíquico e necessidade de psicoterapia, a indenização foi fixada em R$ 30.000,00, preservada a autonomia entre a seara alimentar (onde se discutiu o custeio terapêutico) e a reparação moral pela violação do dever de cuidado (STJ, REsp 1.887.697/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 23/09/2021)¹.
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A Lei nº 15.240/2025 opera em três planos. No plano principiológico, reforça a dignidade da pessoa humana, o melhor interesse da criança e o cuidado como valor jurídico objetivo. No plano normativo, confere densidade ao entendimento de que o dever de parentalidade responsável tem conteúdo jurídico exigível. No plano processual-material, oferece previsibilidade para a tutela indenizatória, sem engessar o prudente arbítrio judicial na fixação do quantum, que deve equilibrar função compensatória e pedagógica.
Os tribunais estaduais consolidam a possibilidade de reparação. O TJMT reconheceu o ilícito em caso de ruptura voluntária da convivência e negligência em relação a filha com necessidades especiais, acentuando que pagar alimentos não exaure os deveres parentais, e manteve o quantum por proporcionalidade². O TJDFT destacou que amar é faculdade, mas cuidar é obrigação civil, admitindo a compreensão do dano moral como in re ipsa em abandonos graves e prolongados, e afastou parâmetros automáticos na fixação do valor, que deve considerar duração, intensidade do sofrimento e condições econômicas³. O TJRO, em idêntico sentido, assentou que o descumprimento do dever estatalmente imposto de cuidado enseja sanção pecuniária pela via da responsabilidade civil⁴.
A compensação por dano moral em abandono afetivo não “compra” o amor, nem substitui o vínculo, mas busca mitigar, dentro do possível, a dor, a angústia, a frustração existencial e os transtornos psíquicos gerados pela omissão parental. A doutrina descreve essa conversão como transformação da obrigação natural (moral) em obrigação civil, com finalidade compensatória e pedagógica. A quantificação observa critérios como gravidade e duração do abandono, idade do filho ao início da omissão, existência de laudos psicológicos, sequelas psíquicas e sociais, capacidade econômica das partes e prevenção geral, evitando enriquecimento sem causa. A lei corretamente não fixa tabelas, preservando a análise casuística.
A prova do abandono afetivo exige cuidado. Depoimentos, histórico de convivência, registros de visitas, documentos médicos e laudos psicológicos auxiliam a demonstrar a omissão qualificada e sua repercussão. A compreensão do dano moral in re ipsa pode ser adotada em hipóteses de abandono notório e prolongado, reduzindo a revitimização, sem dispensar a verificação do nexo e da gravidade. É crucial distinguir ausências justificadas — saúde, impedimentos reais — do afastamento culposo ou doloso. A Lei nº 15.240/2025 não instaura responsabilidade objetiva: preserva-se a necessidade de demonstrar conduta, dano e nexo causal.
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A autonomia entre esferas obrigacionais familiares é ponto central. Alimentos, regidos por necessidade e possibilidade, não substituem o dever de cuidado e convivência. A adimplência alimentar, por si, não afasta a compensação por dano moral quando comprovada a violação grave do dever de cuidar. Por outro lado, despesas específicas já contempladas em título alimentar (como psicoterapia) devem ser cobradas na via própria, evitando duplicidade. Medidas de suspensão ou perda do poder familiar cumprem função protetiva e sancionatória, mas não exaurem a necessidade de compensação moral pelos danos já causados.
Constitucionalmente, a nova lei reafirma a paternidade responsável como dever jurídico. O art. 227 da Constituição impõe aos genitores obrigações positivas de proteção, educação e convivência. A tutela civil por meio de compensação pecuniária é instrumento idôneo para recompor, ainda que imperfeitamente, o abalo experimentado, sinalizando que o abandono afetivo é conduta reprovável. A função preventiva da responsabilidade civil adquire relevo: além de compensar a vítima, desestimula a naturalização da ausência parental.
Na aplicação prática, os precedentes ilustram parâmetros de causalidade e de quantum. A abrupta ruptura da convivência em tenra idade, após laços formados, com prova de ansiedade, traumas e necessidade de psicoterapia, justifica indenização compatível com a gravidade do caso e a capacidade econômica do ofensor. Em situações de especial vulnerabilidade do filho, a omissão parental agrava o dano, exigindo resposta judicial proporcional. Cada decisão deve ser motivada, evitando fórmulas automáticas e observando a singularidade do sofrimento.
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A positivação do abandono afetivo como ilícito civil fortalece uma cultura jurídica do cuidado. Amar permanece uma possibilidade; cuidar é obrigação. Onde o cuidado falta de forma culposa ou dolosa e produz dano, cabe responsabilização civil, para compensar a vítima, prevenir novas omissões e afirmar a dignidade de crianças e adolescentes como núcleo inegociável do Estado Democrático de Direito.
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Notas de rodapé
- “É juridicamente possível a reparação de danos pleiteada pelo filho em face dos pais que tenha como fundamento o abandono afetivo […]” com indenização de R$ 30.000,00 e autonomia entre searas alimentar e indenizatória. STJ, REsp 1.887.697/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 21/09/2021, DJe 23/09/2021.
- “As provas […] caracterizaram o abandono afetivo e a negligência do genitor […] não basta pagar prestação alimentícia para dar como quitada sua obrigação.” TJ-MT, AC 0003643-30.2017.8.11.0020, Rel. Marilsen Andrade Addario, 2ª Câmara de Direito Privado, j. 08/03/2023, pub. 15/03/2023.
- “Amar é uma possibilidade; cuidar é uma obrigação civil.” Dano moral in re ipsa, critérios prudenciais e manutenção de R$ 50.000,00. TJ-DF, Apelação 0015096-12.2016.8.07.0006, Rel. Nídia Corrêa Lima, 8ª Turma Cível, j. 28/03/2019, DJE 04/04/2019, p. 404/405.
- “O amor é uma faculdade […], mas o cuidado, atenção e respeito para com o filho é dever.” Danos morais reconhecidos. TJ-RO, AC 7000916-83.2020.822.0014, 2ª Câmara Cível, Rel. Des. Isaias Fonseca Moraes, j. 28/07/2023.

