O Poder Judiciário brasileiro vive um momento histórico de estímulo a métodos consensuais de solução de conflitos. Dados recentes destacam que o Supremo Tribunal Federal chegou à marca de 50 acordos de conciliação homologados no âmbito de sua competência.[1] Isso evidencia não apenas uma mudança de mentalidade institucional, mas também reforça a necessidade de atenção à instrumentalização dessa forma de resolver disputas.
O acesso à justiça foi amplamente garantido pelo Constituinte de 1988. Qualquer lesão ou ameaça a direito pode ser submetido ao Judiciário, em um panorama repleto de instrumentos processuais até então inexistentes.
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A Emenda Constitucional 45, promulgada em 30 de dezembro de 2004, focou em modernizar e tornar mais eficiente o Poder Judiciário, em resposta a críticas sobre lentidão e falta de transparência. É nesse contexto que o direito fundamental à razoável duração do processo foi inserido na Constituição, a garantir a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.[2]
Apesar dos avanços alcançados – especialmente no que se refere à digitalização dos processos e transformação digital, é fato que o sistema judicial brasileiro seguiu a enfrentar desafios de morosidade em boa parte decorrentes da alta quantidade de ações em curso no país, que continuam a crescer sem representar efetividade na garantia do acesso à justiça.
De acordo com o último relatório “Justiça em Números”, há, no Judiciário nacional, cerca de 83,8 milhões de processos em tramitação, sendo que 35,3 milhões eram novos processos, em um recorde de distribuição anual.[3]
Nesse cenário, os métodos consensuais passaram a ganhar destaque como ferramentas estratégicas para aliviar o Judiciário, no que poderia ser descrita como uma verdadeira terceira fase evolutiva na construção de uma jurisdição mais ágil e eficiente no Brasil.
Essa nova etapa representa um ponto de convergência entre dois pilares fundamentais: o amplo acesso à Justiça, assegurado pela Constituição de 1988, e a celeridade processual, consagrada pela Emenda Constitucional 45.
Nessa esteira evolutiva, o Conselho Nacional de Justiça instituiu a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário, por meio da Resolução 125, de 29 de novembro de 2010. Esse instrumento estimulou a implementação de núcleos judiciários de solução consensual de disputas – os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania –, e a promoção da capacitação de conciliadores e mediadores, além de estabelecer um Código de Ética para sua atuação.
No âmbito legal, a cultura da autocomposição foi incorporada pelo Código de Processo Civil de 2015, que dispõe que o Estado deve promover a solução pacífica dos conflitos e que é dever do juiz estimular, a qualquer tempo, a conciliação e a mediação.[4] O próprio rito processual foi adaptado para tanto, com a previsão da necessidade de audiência prévia de conciliação ou mediação em determinados ritos processuais.[5]
Atentos a esse movimento, os tribunais superiores, especialmente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, passaram a dar contornos institucionais efetivos a essa dinâmica.
No Supremo Tribunal Federal, o primeiro núcleo responsável pela temática foi o Centro de Mediação e Conciliação, criado em agosto de 2020, na presidência do ministro Dias Toffoli.[6] Já com a ministra Rosa Weber, a estrutura foi ampliada e em dezembro de 2022 foi instituído o Centro de Soluções Alternativas de Litígios (Cesal), composto pelo próprio Centro de Mediação e Conciliação, pelo Centro de Cooperação Judiciária e pelo Centro de Coordenação e Apoio às Demandas Estruturais e Litígios Complexos (Cadec).[7]
Na presidência do ministro Roberto Barroso, essa configuração foi transferida à Assessoria de Apoio à Jurisdição (AAJ). Constituída em dezembro de 2023, a AAJ é composta por três órgãos: a) Núcleo de Processos Estruturais e Complexos (Nupec); b) Núcleo de Solução Consensual de Conflitos (Nusol); e c) Núcleo de Análise de Dados e Estatística (Nuade).[8]
Especificamente em relação ao Nusol, este é voltado para implementação de soluções consensuais de conflitos processuais e pré-processuais, assim como para promoção da cooperação judiciária da Corte com os demais órgãos do Poder Judiciário.
De acordo com informações disponibilizadas pelo STF, “o Nusol pode atuar, por exemplo: 1) no auxílio à triagem de processos que, por sua natureza, permitam a solução pacífica; 2) na realização ou no apoio à realização de sessões de conciliação ou mediação, ou com o uso de outro método adequado de tratamento de controvérsias, por solicitação do relator; e 3) na promoção da cooperação judiciária, sempre consensual, entre STF e demais órgãos do Poder Judiciário, bem como com outros atores do sistema de justiça e da sociedade civil organizada”.[9]
Os dados do Nusol demonstram a atividade da corte no sentido de estimular a consensualidade. Até o momento, já foram realizadas 183 audiências de conciliação. Há, atualmente, 24 processos em análise pelo Núcleo, ações que versam sobre as mais variadas questões.[10]
Destaca-se o desempenho essencial do Nusol na Petição 13.157, sob relatoria do ministro presidente, por meio da qual foi homologado o Acordo Judicial para Reparação Integral e Definitiva ao Rompimento da Barragem de Fundão. No caso, as partes submeteram pedido ao Supremo pelo qual requereram a atuação pré-processual do Núcleo.
O objetivo era que a Mesa de Repactuação, que fora instituída pelo Tribunal Regional Federal da 6ª Região para a solução consensual dos conflitos originados do rompimento da barragem, tivesse continuidade perante a corte, considerando o risco de conflitos interfederativos e de novas demandas judiciais.
Com o deferimento do pedido, o Nusol participou da negociação das cláusulas finais do acordo, atuando para sanar divergências, o que resultou na celebração do Acordo de Repactuação homologado pela corte. E, mesmo após tal concretização, o Núcleo de Solução Consensual de Conflitos segue a ele vinculado, pela determinação segundo a qual o STF atuará como órgão jurisdicional supervisor de seu cumprimento, com apoio do Núcleo de Processos Estruturais e Complexos e do próprio Nusol.[11]
Ainda que eventualmente não haja conciliação, a submissão de uma demanda ao Núcleo de Solução Consensual de Conflitos também pode apresentar resultados positivos. Para a supervisora do Nusol, a Juíza Trícia Navarro, “é possível extrair benefícios mesmo nos casos em que não houve acordo, pois as partes saem das tentativas de conciliação com as expectativas mais alinhadas e com mais informações e comunicação destravada”.[12]
Nesse sentido, a ACO 3688, de relatoria do ministro Edson Fachin, na qual foram feitas quatro tentativas de conciliação, mas que teve prosseguimento normal para julgamento. No caso, discute-se a classificação do Gasoduto Subida da Serra, que conecta a Baixada Santista à região metropolitana de São Paulo: se este deve ser considerado como de distribuição, sob regulação estadual, ou como de transporte, com competência regulatória da União. Cuida-se inclusive de exemplo que demonstra que os mais variados temas estão a ser submetidos a tentativas de soluções consensuais.
O STJ também tem dado passos relevantes no sentido do estímulo ao consensualismo. Em 22 de abril foi inaugurado o Centro Judiciário de Soluções de Conflitos (Cejusc-STJ)[13], órgão voltado à promoção da mediação e da conciliação em processos da corte.
Para tanto, esse novo núcleo é dividido em três câmaras: de Direito Público, de Direito Privado e de Direito Penal. As unidades são supervisionadas por um ministro de cada seção especializada do tribunal, no caso, respectivamente, pelos ministros Paulo Sérgio Domingues, Marco Buzzi e Sebastião Reis Júnior.[14]
Além das solicitações feitas pelas partes por intermédio de seus representantes legais, é facultado a qualquer ministro apontar processos com possibilidade de acordo e propor ao relator seu encaminhamento ao Cejusc, desde que haja anuência das partes envolvidas.
Apesar dos avanços institucionais promovidos pelos tribunais superiores, a consolidação de uma cultura da consensualidade ainda enfrenta importantes desafios no Brasil. A prática jurídica nacional permanece profundamente marcada por uma lógica adversarial. Essa mentalidade dificulta a internalização de valores associados à mediação e à conciliação e faz com que tais práticas precisem ser ainda mais estimuladas e seus benefícios mais bem expostos.
É fundamental, ainda, manter a vigilância para que a valorização do consensualismo não acabe por restringir direitos fundamentais. O emprego de mecanismos consensuais deve cuidadosamente considerar, por exemplo, eventuais assimetrias entre as partes, sob pena de comprometer a própria ideia de justiça e equilíbrio processual.
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Ademais, sobretudo no contexto do STF, há críticas quanto à admissibilidade de práticas consensuais em determinadas espécies processuais, como nas ações de controle concentrado de constitucionalidade, tradicionalmente marcadas por seu caráter abstrato. Tais reservas evidenciam a necessidade de cautela na aplicação prática desses instrumentos.
A valorização dos métodos consensuais de resolução de conflitos no Judiciário brasileiro representa um avanço importante na busca por um sistema mais ágil e colaborativo. Essa mudança, no entanto, não está isenta de eventuais objeções, a apontar possíveis riscos na aplicação indiscriminada desses instrumentos.
É fundamental que tais questionamentos sejam considerados com atenção, a fim de garantir que a consensualidade não se sobreponha a princípios fundamentais de justiça. De qualquer forma, esse movimento indica um caminho promissor rumo a um modelo de Justiça cada vez mais alinhado com os valores democráticos.
[1] CNN. STF validou 50 acordos de conciliação nos últimos dez anos, reportagem de 8.7.2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/teo-cury/politica/stf-validou-50-acordos-de-conciliacao-nos-ultimos-dez-anos/. Acesso em: 8.7.2025.
[2] Cf. art. 5º, LXXVIII, Constituição Federal.
[3] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório Justiça em Números 2024. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/05/justica-em-numeros-2024-v-28-05-2024.pdf. Acesso em: 22.6.2025.
[4] “Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. § 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”.
[5] “Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência”.
[6] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ministro Dias Toffoli cria Centro de Mediação e Conciliação no STF. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/ministro-dias-toffoli-cria-centro-de-mediacao-e-conciliacao-no-stf/. Acesso em: 7.7.2025.
[7] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF cria Centro de Soluções Alternativas de Litígios. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=499682&ori=1. Acesso em: 7.7.2025.
[8] Cf. Dados do Núcleo de Solução Consensual de Conflitos – NUSOL. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=cmc&pagina=apresentacao. Acesso em: 8.7.2025.
[9] Cf. Dados do Núcleo de Solução Consensual de Conflitos – NUSOL. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=cmc&pagina=apresentacao. Acesso em: 27.8.2025.
[10] Cf. Dados do Núcleo de Solução Consensual de Conflitos – NUSOL. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=cmc&pagina=apresentacao. Acesso em: 27.8.2025.
[11] Item 228, da decisão homologatória do Acordo de Repactuação.
[12] CNN. STF validou 50 acordos de conciliação nos últimos dez anos, reportagem de 8.7.2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/teo-cury/politica/stf-validou-50-acordos-de-conciliacao-nos-ultimos-dez-anos/. Acesso em: 8.7.2025.
[13] O Centro Judiciário de Solução de Conflitos do Superior Tribunal de Justiça (CEJUSC/STJ), instituído em 2016 e inserido no RISTJ pela Emenda Regimental n. 23/2016 (art. 11, parágrafo único, IV; art. 21, XVII; e arts. 288-A a 288-C), foi regulamentado pelas Resoluções STJ/GP n. 14 de 21 de junho de 2024 e 21 de 2 de outubro de 2024. Cf. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Cejusc. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Processos/cejusc. Acesso em: 24.6.2025.
[14] Cf. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Cejusc. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Processos/cejusc. Acesso em: 24.6.2025. Outro exemplo de demanda submetida ao Núcleo de Solução Consensual de Conflitos é a ACO 3688, de relatoria do ministro Edson Fachin. Na ação, discute-se a classificação do Gasoduto Subida da Serra, que conecta a Baixada Santista à região metropolitana de São Paulo: se este deve ser considerado como de distribuição, sob regulação estadual, ou como de transporte, cuja competência regulatória é da União. Em novembro de 2024, o processo foi suspenso para tentativa de conciliação entre as partes e ao todo foram realizadas quatro audiências conciliatórias