O Brasil ainda finge que não faz lobby. Mas faz — e cada vez mais. A rodada de tarifas impostas pelos Estados Unidos sobre produtos brasileiros expôs, mais uma vez, essa contradição. Enquanto o país insiste em tratar a representação de interesses como sinônimo de privilégio ou corrupção, foram justamente as articulações privadas e institucionais que conseguiram conter parte dos danos e reabrir o diálogo político com Washington.
O caso das tarifas mostrou, com clareza desconfortável, que o lobby brasileiro existe — apenas não é reconhecido como instrumento central da representação democrática e da preservação de interesses nacionais.
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Quando o governo Trump anunciou as sobretaxas a reação brasileira foi imediata e previsível: multiplicaram-se críticas ao Itamaraty, pedidos de respostas rápidas e cobranças por notas de protesto. O que passou quase despercebido, porém, foi que o principal contrapeso à decisão não veio da diplomacia tradicional, mas da legítima articulação institucional do setor privado. Foi o lobby que conseguiu impor a realidade à política americana.
Enquanto o governo brasileiro mantinha um diálogo formal com Washington, dentro dos limites e do tempo da diplomacia, empresas e confederações nacionais buscaram um caminho mais direto. A Confederação Nacional da Indústria (CNI), por exemplo, contratou consultorias de lobby e relações governamentais nos Estados Unidos para defender os interesses do setor produtivo brasileiro junto ao Congresso e ao Departamento de Comércio. Outras entidades empresariais seguiram o mesmo caminho, com atuação estruturada e registrada, voltada a demonstrar o impacto das tarifas sobre cadeias produtivas integradas entre os dois países.
Essa atuação não teve nada de obscura. Foi exercida dentro das regras locais, com registro, transparência e prestação de contas pública. E foi ela que surtiu efeito político concreto: em 28 de outubro de 2025, o Senado norte-americano aprovou, por 52 votos a 48, de forma simbólica, um projeto de lei que revoga parte das tarifas e põe fim ao estado de emergência comercial declarado contra o Brasil — medida que havia servido de base às sobretaxas impostas por Donald Trump (Reuters, 28/10/2025). O texto, que deve ser rejeitado na Câmara, tem efeito mais político do que normativo. Mas o simples fato de ter sido votado e aprovado simbolicamente revela algo maior: a abertura institucional das negociações e o reestabelecimento de canais diretos entre os presidentes Trump e Lula também são, em parte, resultado do trabalho persistente de lobistas, consultores e representantes brasileiros em Washington. O lobby impôs a realidade, a abriu também as portas para a diplomacia.
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Este episódio evidencia a diferença entre o modo como os Estados Unidos encaram o lobby e a maneira como o Brasil ainda o trata. Lá, a representação de interesses é parte natural do funcionamento democrático. Aqui, continua associada a corrupção e privilégio. Essa distorção conceitual é a raiz do problema.
Conforme já se pôde defender neste espaço, lobby é uma ferramenta legítima de interlocução entre Estado e sociedade. O que é ilícito tem outros nomes e já está previsto em lei: corrupção, tráfico de influência, advocacia administrativa, entre outros. Misturar tudo em um mesmo rótulo não só alimenta o preconceito, mas também empurra a atividade legítima para a informalidade.
A cultura política brasileira ainda resiste em admitir que a defesa organizada de interesses também é forma de participação democrática. A cada vez que o tema volta à pauta, repete-se o mesmo roteiro moralista. O problema não é o lobby, mas a ausência de uma legislação que o torne rastreável, público e auditável. A falta de regras claras cria o terreno fértil para a suspeita. Em vez de disciplinar, o Brasil prefere negar. E ao negar, acaba por institucionalizar o improviso, e temer o “fantasma do lobby mau”.
O caso das tarifas mostra com clareza o custo dessa negação. Enquanto os Estados Unidos atuam com previsibilidade, permitindo que grupos de interesse exponham argumentos técnicos e econômicos dentro de um sistema regulado, o Brasil ainda se prende ao tabu moral. O resultado é que, na prática, as empresas brasileiras já fazem lobby – só não o reconhecem como instrumento legítimo da interlocução democrática. Contratam intermediários no exterior, pagam caro por representação legítima e eficaz, mas evitam dar o mesmo nome à atividade quando ela ocorre internamente. Exporta-se influência e importa-se hipocrisia.
É importante reconhecer que a diplomacia tradicional continua indispensável. Nenhum país pode prescindir da ação estatal coordenada na defesa de seus interesses. Mas o contexto das tarifas mostrou que, sozinha, ela não é suficiente. O comércio internacional contemporâneo é determinado por múltiplos vetores – econômicos, legislativos, regulatórios e eleitorais – e não apenas por acordos entre governos. O lobby complementa a diplomacia porque atua no nível onde as decisões são realmente tomadas: no detalhe das comissões, nas audiências públicas, na linguagem dos setores produtivos.
O que diferencia o modelo americano do brasileiro é a institucionalização da influência. Lá, há cadastros oficiais, relatórios obrigatórios e sanções severas para quem descumpre a transparência. Aqui, há silêncio, desconfiança e informalidade. O que nos falta não é moral, mas método. Regular o lobby significa assumir que a influência é inevitável e que, portanto, deve ser exercida às claras, dentro da lei. É reconhecer que o Estado tem o dever de ouvir, mas também o direito de saber quem fala, em nome de quem e com que propósito.
A ausência de uma lei de transparência do lobby não impede que ele exista – apenas o torna invisível. O vácuo normativo protege o que se quer combater e pune o que se quer legitimar. É o pior dos mundos: quem age com ética é suspeito; quem atua nas sombras passa despercebido. Regular a atividade é trazer luz ao processo, não estimular interesses privados. É garantir que os representantes de interesse sejam identificáveis e que a sociedade possa fiscalizar sua atuação. É transformar o diálogo em procedimento público.
O lobby é, em essência, um mecanismo de informação. Quando operado com integridade, melhora a qualidade das decisões públicas porque aproxima o Estado das realidades econômicas e técnicas dos setores afetados. O episódio das tarifas mostra isso com clareza. Foi o diálogo direto entre empresas, associações e autoridades americanas que produziu resultados práticos em um cenário em que a negociação diplomática, sozinha, dificilmente surtiria efeito. A influência legítima impôs a realidade à política — e isso não é um demérito, é um mérito institucional.
O Brasil ainda precisa atravessar essa curva de aprendizado. Continuar fingindo que não faz lobby é uma forma de infantilismo político. Em um mundo onde interesses são defendidos de forma profissional, negar o instrumento equivale a abdicar de poder. O país que deseja ser protagonista nas cadeias globais de valor precisa também ser protagonista nos fóruns de influência que as moldam. Regular não é ceder ao interesse privado — é discipliná-lo com transparência. Regular é dar forma ao que já é fato. É permitir que o diálogo entre Estado e sociedade seja público e responsável. É substituir a suspeita pela transparência.
Negar o lobby é negar a política. Fingir neutralidade é apenas disfarçar influência. Em vez de combater o diálogo, o Brasil precisa civilizá-lo. Porque a influência existe — com ou sem lei —, e só a transparência transforma poder em legitimidade. O país que insiste em tratar o lobby como pecado continuará a perdê-lo para quem o trata como método. E método, hoje, é soberania. O Brasil não precisa de menos lobby. Precisa de mais luz sobre ele — e menos medo de chamá-lo pelo nome.

