O governo Lula vive um dilema sobre como lidar com o atual presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB). Passados seis meses desde que o deputado paraibano assumiu a cadeira, ainda não está claro, no Palácio do Planalto, qual é exatamente sua linha de atuação no comando da Casa — nem que tipo de relação ele pretende cultivar com o Executivo.
Mas o sentimento de que essa relação tende a não ser tão amistosa quanto espera o governo petista ganhou força às 23h35 da última terça-feira (24), quando Motta anunciou pelas redes sociais que pautaria a votação do projeto de decreto legislativo (PDL) que derruba o decreto que aumentou as alíquotas do IOF. Mesmo assim, entre os palacianos ainda predomina o entendimento de que não é uma boa ideia partir agora para o embate com o presidente da Câmara.
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A boa vontade do Planalto com Motta parte de uma premissa realista: a composição do atual Congresso torna impossível ao governo construir uma maioria estável. Nesse cenário, manter uma relação minimamente funcional com o presidente da Câmara é essencial para amortecer a ausência de uma base ampla e constante. Há também a compreensão de que Motta responde, antes de tudo, ao seu colégio eleitoral mais imediato — os próprios deputados — e que tem um estilo próprio, marcado por diálogo e respeito entre os pares.
De fato, há no governo petista quem veja no “Hugo Motta autêntico” um político de perfil conciliador, de conversa, avesso à truculência que caracterizou seu antecessor, Arthur Lira (PP-AL). Essa percepção, somada ao estilo mais discreto do parlamentar, ajudou a construir desde o início uma simpatia pessoal por parte do próprio presidente Lula, que o enxerga como uma figura jovem com grande futuro político.
O problema é que, para uma parte relevante do entorno presidencial, esse “Hugo Motta autêntico” parece sumir quando pressionado por seus pares no Congresso. Nos bastidores do Planalto, crescem as desconfianças de que, em determinados momentos, o presidente da Câmara atua teleguiado por figuras como Lira e o senador Ciro Nogueira (PP-PI), um dos maiores expoentes da oposição.
Também gera desconforto seu histórico de proximidade com Eduardo Cunha — o ex-presidente da Câmara que capitaneou o impeachment de Dilma Rousseff. Outros já enxergam em seus movimentos uma influência excessiva do mercado financeiro, numa comparação inevitável com Rodrigo Maia nos tempos em que presidia a Casa.
A diferença de tom entre o Motta das conversas reservadas com Lula e ministros e o Motta que se apresenta nas reuniões do colégio de líderes tem alimentado essa inquietação no Palácio. São dois personagens, dizem interlocutores do governo.
Ciente dos riscos de um desgaste com o chefe da Câmara, a ministra Gleisi Hoffmann (Relações Institucionais) tem atuado como bombeira. Em mais de uma ocasião, foi às redes sociais defender Motta das críticas de colegas do governo. Um gesto que tem dupla motivação: de um lado, evitar que a relação com o Congresso azede de vez; de outro, preservar a autoridade de Motta, já que negociar com um presidente da Câmara enfraquecido não interessa ao Planalto.
Motta, por sua vez, cativa uma boa relação histórica com Gleisi e o líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (PT-RJ). Mas tem buscado desfazer a imagem de “governista” que nutriu neste semestre ao acompanhar o presidente em viagens internacionais ao Japão e Vietnã e ao enterro do papa Francisco.
Agora, dizem aliados, ele tem atuado para mostrar independência em relação ao Planalto e que representa o Congresso hostil ao governo petista que saiu das urnas em 2022. O deputado, por exemplo, nem sequer atendeu os telefonemas de Gleisi ao longo desta quarta-feira (25), o que foi visto no Planalto como uma enorme descortesia. Há semanas, ignora também os telefonemas do ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
O Senado e a previsibilidade de Alcolumbre, inexistente com Motta
Se a equação na Câmara é hoje um quebra-cabeça, no Senado a situação é bem mais clara. Davi Alcolumbre (União-AP) é visto como um interlocutor mais previsível, de perfil conhecido e que controla melhor seus pares. É, além disso, experiente, conhece os códigos da política e ocupa, há mais tempo, o primeiro escalão do jogo institucional.
Há um dito no Planalto petista que “tudo para Davi tem um preço”, que, em geral, o governo sabe qual é. Atualmente, por exemplo, ele quer a cabeça do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, em troca de não dificultar as coisas. A mesma comparação ocorre em relação ao antecessor de Motta. Há, no entorno de Lula, quem verbalize, meio a contragosto, que Lira, apesar da personalidade mais difícil, “cumpre o que pactua”. E, por isso mesmo, seria “mais previsível”.
Com Motta, ter previsibilidade é mais difícil. No início do mês, ele deixou uma reunião na residência oficial da Câmara — da qual participaram Haddad (Fazenda), Rui Costa (Casa Civil) e Gleisi — classificando o encontro para tratar da crise do IOF como “histórico”. No dia seguinte, disse que não podia se comprometer com nada que havia sido conversado ali. Poucos dias depois, pautou a urgência do PDL que mira derrubar o decreto do Executivo, com um discurso duro contra o governo.
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O mesmo padrão se repetiu mais recentemente, durante as negociações sobre a derrubada de vetos de Lula. Motta, Gleisi e Rui Costa passaram horas discutindo item por item — eram mais de 200 — e selaram acordos sobre o que seria mantido, o que seria derrubado e o que ficaria para depois, por falta de consenso. Mas, para surpresa do governo, o veto que impedia subsídios à contratação de pequenas centrais hidrelétricas caiu, apesar de não estar no pacote negociado.
Nos bastidores, a tropa de choque do Planalto não demorou a associar a derrubada do veto a um impacto direto na conta de luz. A leitura no governo é que deputados derrubaram o veto para beneficiar um grupo de empresários — em especial do setor de PCHs e eólicas offshore — para punir o Planalto.
Qual o “dia seguinte” dessa relação?
Em meio a essa sequência, uma parte do entorno de Lula passou a defender uma inflexão gradual na relação com o Congresso — e uma postura mais combativa. Está no forno uma medida provisória para reverter os efeitos da derrubada dos vetos no setor elétrico, a chamada “MP dos Vetos”. E, se vier nova derrota, há quem defenda abrir um novo flanco na guerra de comunicação, atribuindo aos deputados a responsabilidade por votar a favor de medidas que oneram os consumidores.
Essa estratégia se encaixa na narrativa que o governo já vem empunhando em outros campos, como a isenção de imposto de renda para quem ganha até R$ 5.000 e a própria discussão sobre o IOF: a de que está disposto a onerar os mais ricos para aliviar os mais pobres. No Planalto, já está claro que entrar nesse embate com o centrão mobiliza não apenas a militância petista, mas também gera adesão de parte da opinião pública, ainda que de forma difusa. Trata-se, na prática, da “fase 1” do enfrentamento com a Câmara.
A “fase 2” pode vir se Motta continuar chancelando o discurso, que ganha corpo no centrão, de que o governo Lula é “gastador”. Dentro do governo, há pressões para que ministros e o próprio presidente passem a vocalizar, de forma mais explícita, o caráter igualmente perdulário do Congresso.
A tese tem base, por exemplo, no fato de que o Legislativo segue adiando votações que poderiam gerar cortes efetivos de despesas — como a reforma da previdência dos militares — e aprovou o aumento do número de deputados dos atuais 513 para 531, como saída para a pressão demográfica de alguns estados, em vez de redistribuir as vagas já existentes. Também pode se falar dos R$ 50 bilhões em emendas sob controle dos parlamentares, cerca de um quarto do que o governo tem para gastar.
Interlocutores de lado a lado já admitem um distanciamento entre Motta e o governo Lula. As desconfianças de que esse movimento é pensado se confirmam com falas nos bastidores de aliados do deputado, que afirmam que ele tem buscado mostrar que não é aliado do governo, mas presidente da Câmara. Com certo desdém, fontes do Planalto dizem a mesma coisa com outras palavras, afirmando que Motta tem demonstrado cada vez mais ser o presidente “do sindicato dos deputados”.
Porém, nem um lado nem o outro descartam uma reaproximação, a depender do cenário político. “Amanhã, os caras [Lula e Motta] podem aparecer se abraçando, vai saber”, diz um interlocutor de Motta. Para o Planalto, o enigma Hugo Motta segue indecifrado.