No campo tributário, a modulação de efeitos das decisões proferidas pelos tribunais superiores tem sido cada vez mais frequente. Levantamento do JOTA sinaliza o aumento na aplicação do instituto a partir de 2019[1] e pesquisa da FGV-SP revela que, em 2023, houve recorde de decisões sobre modulação no STF[2].
Associada a essa constatação, tem sido cada vez mais recorrente a mobilização retórica de dados sobre o impacto financeiro das decisões, como forma de sustentar a necessidade de modular seus efeitos e preservar a segurança jurídica e excepcional interesse social[3].
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Nos recentes julgamentos dos RE 870.947 ED (Tema 810 RG[4]), do RE 714.139 (Tema 745 RG[5]) e da ADI 6.145[6], por exemplo, o impacto aos cofres públicos foi mencionado em votos de diferentes ministros como um fator relevante na ponderação sobre a modulação de efeitos.
Esses dados, contudo, apesar de apresentados aos ministros, não foram submetidos ao contraditório, nem tiveram divulgadas as metodologias dos cálculos que os embasaram. Ainda assim, foram suficientes para fundamentar as decisões judiciais[7].
Publicizar todos esses dados, embora seja um pressuposto essencial para o controle democrático do exercício da jurisdição, é ainda insuficiente: é preciso permitir seu efetivo escrutínio pelas partes e pela sociedade.
No âmbito federal, por exemplo, as estimativas de impacto fiscal estão descritas no Anexo de Riscos Fiscais (ARF) que acompanha a elaboração anual da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Esse documento é produzido com a finalidade de garantir transparência e equilíbrio orçamentário[8] e vem sendo acompanhado pelos autores há anos.
Nesse período, constatamos inconsistências recorrentes, como mudanças sem justificativas nos valores indicados para um mesmo tema[9], falta de publicização proativa das bases de dados e dos critérios utilizados na apuração das estimativas[10] e, o mais alarmante, a admissão de que cifras bilionárias incluídas na LDO foram lançadas sem metodologia de cálculo concluída[11].
Os exemplos dessas inconsistências não são novos ou isolados, e já foram explorados em artigos[12] e entrevistas[13] sobre o tema. Ainda assim, persistem na LDO os problemas de transparência e adequação das estimativas.
Em resposta a pedido de acesso à informação em que solicitamos os dados, critérios e fórmulas adotados para o cálculo das estimativas de impacto informadas no ARF da Lei 15.080/2024[14], o Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros da Receita Federal (CETAD) informou que passou a disponibilizar todas as notas técnicas que embasam as estimativas de risco no sítio eletrônico da RFB, indicando o número da nota correspondente a cada tema.
Para a estimativa vinculada aos REsps 2.010.095/RS, 2.010.089/RS, 1.945.110/RS, e 1.987.158/SC[15] (R$ 47 bilhões), contudo, o próprio CETAD reconheceu não ter sido localizado documento que embase o valor informado.
Além disso, as notas técnicas indicadas como fundamento para as estimativas dos RE 928.943, Tema 914 da RG[16] (R$ 19,6 bilhões[17]) e RE 672.215, Tema 536 da RG[18] (R$ 9,1 bilhões[19]) não estão disponíveis para consulta na base de dados disponibilizada pelo CETAD[20].
Há ainda temas que, apesar da existência de nota técnica publicada, carecem de informações que viabilizem sua análise e confronto, ou apresentam estimativas divergentes das constantes no ARF, sem justificativa para a alteração.
É o que ocorre, exemplificativamente, com a estimativa informada para os RE 609.096, Tema 372 da RG, e 880.143[21] (R$ 115,2 bilhões), embasadas na Nota Conjunta COGET-COPAN/COCAJ 003/2012, que apresenta valor divergente daquele constante no ARF e se limita a afirmar:
“O valor envolvido nessa ação corresponde a cerca de R$ 22,5 bilhões, com posição atualizada para 01/01/2012, considerando somente as instituições financeiras e seguradoras da área de abrangência da Delegacia das Instituições Financeiras – DEINF sediada em São Paulo, e tem como base o valor efetivamente pago adicionado ao que ainda se encontra em discussão judicial”.
Pela restrição de espaço e objetivo deste artigo, não trataremos aqui sobre a adequação ou não da utilização de estimativas de impacto fiscal como fundamento para os julgamentos em matéria tributária, seja no julgamento de mérito sobre a constitucionalidade da legislação contestada[22], seja para a modulação de efeitos da decisão.
O tema é de grande relevância e perpassa problemas estruturais de nosso sistema, como o longo tempo até o julgamento de repercussões gerais e ações de controle concentrado de constitucionalidade[23] e a aposta histórica de diferentes Administrações Públicas no contencioso[24], em detrimento da adoção de medidas preventivas de ajuste da arrecadação[25] e da legislação tributária[26]. É, portanto, tema que merece reflexão aprofundada em texto dedicado apenas a esse assunto.
Tendo em vista o uso já recorrente dessas estimativas em decisões do STF, propomos uma abordagem voltada à definição de procedimentos mínimos que garantam maior transparência, institucionalidade e credibilidade.
O primeiro deles é a obrigatoriedade de que os dados de impacto financeiro sejam submetidos ao contraditório, com a abertura de prazo para manifestação das partes e dos amici curiae sobre os potenciais impactos da decisão para a segurança jurídica e, ou, o excepcional interesse social.
A segunda sugestão é a de aproveitar a estrutura do Núcleo de Processos Estruturais e Complexos (NUPEC), criado para auxiliar a atuação dos gabinetes dos ministros do STF na identificação e processamento de ações estruturais e complexas, para a análise dessas estimativas de impacto financeiro apresentadas pelas partes e amici curiae.
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Convém dar ampla publicidade à atuação do núcleo, de modo a garantir uma análise que alie técnica e contraditório na depuração dos números levados ao conhecimento dos ministros. Núcleo semelhante poderia ser criado também no STJ, já com esses ajustes de transparência.
Em linha com essas sugestões, a fundamentação das decisões sobre a modulação de efeitos deve se restringir exclusivamente às informações tornadas públicas pelas partes e amici[27] e submetidas ao núcleo técnico de assessoramento dos ministros, de modo que os fatos considerados pelos ministros se tornem razões de decidir públicas[28].
A instrumentalização dos dados de impacto fiscal já é uma realidade. É necessário, portanto, estabelecer regras claras e transparentes para seu uso como causa de pedir. Assim, atende-se ao devido processo legal e reduz-se o risco de que decisões das cortes superiores sejam orientadas por estimativas inadequadas.
[1] https://www.jota.info/tributos/modulacao-de-efeitos-stf-decide-em-909-dos-casos-favoravelmente-ao-fisco
[2] https://repositorio.fgv.br/server/api/core/bitstreams/ba4b5389-04a2-4148-939b-d249a368cc21/content
[3] Hipóteses autorizadoras da modulação de efeitos de decisões judiciais, conforme as previsões dos artigos 27, da Lei nº 9.868/99 e 927, §3º, do Código de Processo Civil.
[4] Validade da correção monetária e dos juros moratórios incidentes sobre as condenações impostas à Fazenda Pública, conforme previstos no art. 1º-F da Lei 9.494/1997, com a redação dada pela Lei 11.960/2009.
[5] Alcance do art. 155, § 2º, III, da Constituição federal, que prevê a aplicação do princípio da seletividade ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS.
[6] Inconstitucionalidade da instituição de taxa de fiscalização de serviço público relativa a processos administrativos fiscais no âmbito da Secretaria de Fazenda Estadual.
[7] A título de exemplo, no voto proferido no julgamento do RE 714.139, o Ministro Dias Tofolli afirmou: “recebi em audiência os governadores dos estados e as respectivas procuradorias, os quais também peticionaram nos autos reproduzindo tabela na qual identificam que o impacto anual da decisão da Corte, tomando como base preços de 2019, varia, a depender do estado, de R$19 milhões (Estado de Roraima) a R$3,59 bilhões (Estado de São Paulo).”.
[8] Conforme exposto na introdução do ARF, o documento busca a explicitação dos critérios utilizados para a mensuração dos riscos e para a construção de projeções.
[9] A título de exemplo, a discussão envolvendo a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/COFINS (Tema 69 da repercussão geral) foi apresentada pela primeira vez na LDO de 2008 (Lei nº 11.514/07), com impacto estimado de R$ 12 bilhões ao ano (R$60 bilhões nos cinco anos anteriores à estimativa, seguindo os critérios de cálculo da Portaria AGU nº 68/22). Na LDO de 2011 (Lei nº 12.309/10) o valor estimado passou para R$89,44 bilhões e na LDO de 2016 (Lei nº 13.242/15) para R$250,3 bilhões, mudanças implementadas sem justificativa exposta no ARF.
[10] O ARF da LDO apenas indica o valor do impacto estimado para as Demandas Judiciais Contra a União de Natureza Tributária, informando que “As estimativas de impacto fiscal são fornecidas pela Receita Federal do Brasil (RFB), considerando, na maioria dos casos, a perda total de arrecadação anual e uma estimativa de impacto de devolução, considerados os últimos cinco anos e a totalidade dos contribuintes, de modo que representa o máximo de impacto ao erário, que pode não se concretizar em sua totalidade” (item 5.1.1.3 do ARF). Não são proativamente publicizados, juntamente com o Anexo, os dados e a metodologia empregados para o cálculo das estimativas informadas. A título de exemplo, confira-se o ARF que acompanha a LDO de 2025 (Lei nº 15.080/24), disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/Anexo/L15080-24-anexos.pdf., Acesso em 23 jun. 2025.
[11] A ausência de cálculos foi reconhecida, por exemplo, com relação às estimativas apresentadas para os temas “PIS e COFINS. Validade de critérios de aplicação da não-cumulatividade” (RE 841.979 – R$472,7 bilhões) e “PIS E COFINS. Incidência sobre as receitas decorrentes da locação de bens móveis” (RE 659.412 – R$19,4 bilhões). Em resposta a pedido de acesso à informação transmitido em 2022 (NUP 03005.249569/2021-52), o CETAD informou que a metodologia das estimativas de impacto informadas para os dois temas no ARF ainda estava em fase de apuração.
[12] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/inspertax/transparencia-e-confiabilidade-do-anexo-de-riscos-fiscais-da-ldo
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/porque-o-stf-nao-deve-confiar-no-impacto-de-r-250-bi
[13] https://www1.folha.uol.com.br/blogs/que-imposto-e-esse/2024/08/calculo-da-receita-sobre-julgamento-bilionario-no-stf-e-contestado.shtml
[14] NUP: 18800.041666/2025-24.
[15] Excluir os benefícios fiscais relacionados ao ICMS, – tais como redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, imunidade, diferimento, entre outros – da base de cálculo do IRPJ e da CSLL (extensão do entendimento firmado no ERESP 1.517.492/PR.
[16] CIDE sobre remessas ao exterior. Discussão a respeito da incidência da CIDE criada pela Lei nº 10.168/2000, destinada a financiar o Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para o Apoio à Inovação.
[17] Nota CETAD nº 189/2016.
[18] PIS/COFINS e CSLL sobre atos cooperativos. Discussão sobre a incidência do PIS, COFINS e CSLL sobre os valores resultantes dos atos cooperativos próprios das sociedades cooperativas.
[19] Nota CETAD 03/2014.
[20] Disponível para consulta em:
https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos/notas-cetad/notas-tecnicas. Acesso em 23 jun. 2025.
[21] PIS/COFINS das instituições financeiras. Discussão a respeito da possibilidade de incidência de PIS/COFINS sobre as receitas de instituições financeiras que decorrem de seu objeto social e incluiriam, portanto, as receitas de natureza financeiras, com fulcro na Lei 9.718/98.
[22] Para além dos julgamentos sobre modulação, as estimativas de impacto já foram destacadas em votos proferidos na análise da própria constitucionalidade de norma submetida a julgamento, a exemplo do voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes no julgamento do RE nº 574/706/PR, Tema 69 da repercussão geral. Na opinião dos autores, a utilização de tais dados como fundamento para a análise do mérito principal das repercussões gerais, postura que se aproxima da teoria dos fatos constitucionais, merece críticas. A análise de constitucionalidade deve ser feita com base no teste de adequação da norma em julgamento aos comandos da Constituição Federal, e não a partir da avaliação de efeitos práticos para as partes e a sociedade.
[23] A exemplo do que ocorre com o tema “PIS sobre locação de bens imóveis. Discussão sobre a incidência de PIS sobre as receitas decorrentes da locação de bens imóveis, inclusive no que se refere às empresas que alugam imóveis esporádica ou eventualmente”, indicado no ARF desde a Lei nº 13.080/15.
[24] Como chamou a atenção o Professor José Maria Arruda de Andrade no artigo “Consequencialismo e Argumento de Risco Fiscal na Modulação de Efeitos em Matéria Tributária”, disponível em: https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/1504/927. Acesso em 23. jun. 2025.
[25] Contrariando o princípio da eficiência da administração pública (art. 37 da CF) e a doutrina do duty to mitigate the loss, fundado na boa-fé objetiva, que conduz ao dever de mitigação pelo credor de seus próprios prejuízos, buscando, diante do inadimplemento do devedor, adotar medidas razoáveis, considerando as circunstâncias concretas, para diminuir suas perdas (cf. trecho do acórdão proferido no REsp 1201672/MS). A referência a essa doutrina nos foi generosamente dada por Ana Carolina Caputo Bastos, em debate sobre a jurisprudência constitucional.
[26] Utilização do contencioso como fonte para ajustes na legislação.
[27] Sendo vedada, portanto, fundamentação da decisão com base em informações disponibilizadas apenas aos Ministros e a seus assessores por meio de memoriais.
[28] Na linha das críticas bem formuladas por Roberta Simões Nascimento no artigo “O economista-chefe do STF e o risco do consequencialismo malandro”, disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/o-economista-chefe-do-stf-e-o-risco-do-consequencialismo-malandro. Acesso em 23 jun. 2025.