Em 1987, quando iniciei a advogar, acreditava-se que o Direito era um campo do conhecimento destinado a oferecer respostas únicas e permanentes. Havia número limitado de normas, tribunais e manuais: bastaria saber procurar – e, com algum esforço, encontrar-se-ia a solução tida como correta.
Um mundo razoavelmente simples, no qual os contratos e as sentenças judiciais seriam a confirmação dessa estabilidade natural. Esse volume limitado e estável de informações fazia com que a profissão parecesse orientada pela ideia de que a certeza era um horizonte possível, bastando tempo e estudo para alcançá-la.
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Com o transcurso do tempo, compreendi que essa certeza era, na verdade, uma doce ilusão. Talvez tenha sido real um dia, mas hoje é apenas um consolo diante da intensa complexidade da vida real, acelerada com o passar dos anos. Mais do que respostas, o que o Direito me parece oferecer é um imenso campo para disputas argumentativas, interpretações concorrentes, interesses contrapostos e decisões tomadas sob incerteza.
Os acórdãos dos tribunais e os atos administrativos variam de modo dinâmico, muitas vezes ao sabor dos ventos. Tanto isso é verdade que o CPC tenta impor o respeito aos precedentes e a LINDB passou a exigir regras de transição para situações dantes estabilizadas, bem como o exame pragmático das consequências das ações estatais.
Atualmente, bem mais do que o sujeito que sabe todas as respostas certas, o advogado é um intérprete em permanente estado de dúvida – e é exatamente nesse mistério que me parece residir a beleza da nossa profissão.
Durante muito tempo, o mistério era bastante menor. Com número reduzido de normas, autoridades públicas limitadas e volume assimilável de decisões relevantes, a previsibilidade era uma das marcas da profissão. Sabíamos de cor os artigos relevantes das leis e as decisões do STF.
Hoje, o cenário mudou. A inflação legislativa, a multiplicação de tribunais e agências reguladoras, os atos de entes subnacionais e os desdobramentos aplicativos da atual Constituição criaram um universo de fontes normativas em constante tensão.
Decisões administrativas são revogadas por resoluções provisórias, portarias tentam modificar contratos complexos, e interpretações jurídicas oscilam ao sabor da política institucional. Vivemos envoltos no mistério, que cresceu – e, com ele, a exigência de preparo técnico e integridade ética.
Mas, atenção: esse crescimento não é um defeito do sistema, tampouco ameaça nossa profissão. Ao contrário: é justamente essa dinâmica que faz da advocacia uma atividade cada vez mais indispensável. A incerteza não paralisa, mas nos convoca a estudar, construir argumentos, formular soluções possíveis e defendê-las com responsabilidade. A profissão não mais sobrevive da resposta pronta, mecanicista, mas do enfrentamento qualificado do que ainda não foi dito – ou do que foi mal interpretado.
No mundo atual da advocacia, marcado por uma torrente incessante de informações, decisões urgentes e fontes normativas em constante mutação, não é possível confiar apenas na memória ou na improvisação. A complexidade crescente das relações jurídico-institucionais exige dos advogados não apenas domínio técnico, mas também métodos eficazes de organização do conhecimento, filtragem do que importa e priorização das decisões.
Em vez de desperdiçar energia com tarefas triviais ou repetir escolhas cotidianas, é preciso estabelecer rotinas, categorias e sistemas externos de apoio que libertem a mente para o que realmente importa: interpretar, formular estratégias e decidir com discernimento. A advocacia, nesse sentido, depende menos de decorar normas e mais de construir ambientes que favoreçam decisões ponderadas e respostas responsáveis em meio ao excesso.
A antiga ilusão do conhecimento jurídico pleno e perfeito estava em supor, como disse William Faulkner, que o fósforo aceso na escuridão revela a luz – quando, na verdade, ele apenas desnuda a vastidão da treva que nos cerca. O que o Direito faz, assim como a literatura, é o mesmo que acender um fósforo no campo em plena noite: não ilumina quase nada, mas revela o quanto ainda estamos imersos na escuridão. Escuridão, incertezas, segredos e, sobretudo, o charme sedutor do mistério.
Talvez seja exatamente nesse cenário de instabilidade normativa, celeridade das relações e densidade institucional que a advocacia encontra sua vocação mais profunda. A nossa profissão destina-se a proteger direitos – em especial os fundamentais – num mundo em que o sentido das normas é frequentemente ambíguo.
A sobrecarga cognitiva sem precedentes a que somos submetidos – recebemos diariamente mais informações do que nossos ancestrais processavam em toda a vida – exige compreender os mecanismos mentais de atenção, memória e tomada de decisões.
Por isso mesmo, não basta conhecer o direito pretérito: é preciso compreender seus fluxos e refluxos, suas flutuações e seus pontos de tensão, bem como os momentos de silêncio. É preciso, especialmente, manusear esse mistério com muito cuidado e ética.
O advogado não apenas interpreta leis, mas, é aquele que protege as pessoas – algumas vezes, até de si mesmas (quando a nossa profissão exige que digamos não). A advocacia é, por natureza, um ofício do risco e da dúvida. A tomada de decisões requer esforço ordenado. E é justamente por isso que cada vez mais a advocacia exige coragem, formação contínua e fidelidade a valores éticos.