A aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico há cinco anos insuflou um novo ânimo no setor, com a promessa de maior segurança jurídica e estabilidade regulatória no setor, da modelagem de projetos com maior racionalidade econômica e que confiram incentivos adequados para a realização dos investimentos necessários à universalização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Vimos, desde então, um notável esforço de estruturação e licitação de empreendimentos nas mais variadas formas de desestatização desses serviços, atraindo capital e expertise privada para um setor historicamente deficitário em investimentos.
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Se os contratos de concessão são ditos “relacionais”[1], uma analogia interessante é a de que a fase de modelagem e licitação seria um “namoro” e a fase de gestão contratual seria o “casamento”. Contratos bem modelados – com alocações de risco equilibradas segundo critérios de eficiência econômica, indicadores de desempenho claros e mecanismos de reequilíbrio econômico-financeiro eficazes – são (apenas) um ponto de partida excelente. No entanto, sua longevidade dependerá fundamentalmente da capacidade de gestão dessa complexa relação com entre os parceiros público e privado, garantindo que as intenções originais se traduzam em resultados concretos.
“O papel aceita tudo” e a vida do projeto se dá na interação diária entre o poder concedente, a concessionária e o regulador e fundamentalmente na capacidade de adaptação a cenários imprevistos. Falhas na fiscalização, exigências desproporcionais e de alterações que não agregam ao projeto, ou a incapacidade de lidar com pleitos e reequilíbrios de forma transparente e ágil podem corroer a confiança dos investidores, gerar atrasos significativos e, em última instância, comprometer a entrega dos serviços à população. É um alerta para que o investimento público (de tempo, pessoal e financeiro) na fase de modelagem seja acompanhado por um compromisso equivalente de ofertar as melhores condições para que a administração pública possa manter a relação concessória até que o fim da vigência contratual os separe.
Para o setor de saneamento básico brasileiro, essa lição é ainda mais premente. A regionalização, imposta pelo Novo Marco Legal e fundamental para a viabilidade econômica de muitos projetos, transferiu a complexidade da gestão contratual de uma escala municipal para o âmbito regional. Isso significa que os Estados (como regra geral, atuando enquanto representantes da estrutura interfederativa titular dos serviços) e suas respectivas agências reguladoras (enquanto estruturas de administração indireta) precisam desenvolver uma capacidade institucional setorial que até então não lhes era exigida.
Essa fase inicial de gestão contratual, que algumas das primeiras concessões licitadas logo após a publicação do Novo Marco Legal já experimentam, é duplamente crítica.
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Em primeiro lugar, porque é uma fase intensiva de investimentos: é nos primeiros anos de contrato que a maior parte do capital para a universalização é mobilizada e aplicada em campo, até como imposição para o atendimento às metas de universalização. Uma gestão contratual deficiente nesse período pode levar a atrasos, ineficiências na aplicação dos recursos, conflitos contratuais e, em última instância, ao não cumprimento das metas de acesso aos serviços, perpetuando o déficit que o Novo Marco busca resolver. A falta de capacidade para dotar os reguladores de pessoal devidamente capacitado para o exercício das suas funções, aprovar projetos, adotar os atos necessários para desapropriações de imóveis, viabilizar a regularização ambiental e imobiliária de ativos, fiscalizar obras, monitorar o cumprimento de metas e indicadores de desempenho ou processar pleitos de forma ágil impacta diretamente a liquidez e a rentabilidade do concessionário, comprometendo a confiança do investidor e a capacidade de entrega.
Em segundo lugar, pela possibilidade de geração de efeitos sistêmicos: o desempenho das primeiras concessões pode gerar efeitos sistêmicos miméticos ou adaptativos,[2] que podem ser tanto negativos quanto positivos. Falhas na gestão contratual podem induzir efeitos miméticos negativos, onde administrações públicas futuras se baseiam nas práticas inadequadas das gestões que a precederam. Ainda, outros entes podem se basear (ainda que tenham contratos similares) nesses “precedentes” indesejáveis. Por outro lado, podem gerar efeitos adaptativos negativos, onde futuros investidores e licitantes veem a fragilidade do sistema e precificam esse risco em propostas menos vantajosas para futuras licitações ou para futuras operações de financiamento – ou, pior, simplesmente se afastam de participar das licitações e de financiar operações no setor de saneamento.
A universalização do saneamento no Brasil não se fará apenas com bons contratos no papel, mas também com o firme compromisso e a capacidade institucional de estados, municípios e agências de aprimorar a relação por todo o período da concessão. O sucesso dessas primeiras ondas de projetos, portanto, é crucial para consolidar a credibilidade do modelo e atrair mais capital para o restante do país. Isso significa capacitar equipes técnicas, desenvolver sistemas de monitoramento robustos, garantir a independência e a autonomia das agências reguladoras (isto é, evitando que a agência reguladora possa ser capturada tanto pelos interesses da concessionária quanto do poder concedente), e promover uma cultura de gestão contratual ativa e transparente.
[1] GARCIA, Flávio Amaral. A Mutabilidade dos Contratos de Concessão, Juspodivm, 2023, p.113.
[2] STRUCHNER, Noel. Indeterminação e objetividade: quando o direito diz o que não queremos ouvir. In PORTO MACEDO JR, Ronaldo e BARBIERI, Catarina (org). Direito e Interpretação. São Paulo: Saraiva, 2011, p.14