A transição energética deixou de ser uma aspiração para se tornar uma necessidade concreta e urgente. À medida em que o Brasil expande sua matriz limpa, com destaque para a energia solar e eólica, cresce também o desafio de garantir a estabilidade, flexibilidade e segurança do setor elétrico.
Nesse cenário, os Sistemas de Armazenamento de Energia Elétrica (SAE) surgem como ferramentas indispensáveis para a integração eficiente de fontes renováveis intermitentes, cujas características naturais impõem desafios à previsibilidade e à estabilidade da matriz energética. Os SAE se apresentam, assim, não apenas como uma solução tecnológica promissora, mas como uma peça-chave para o futuro energético do país.
Conheça o JOTA PRO Energia, monitoramento jurídico e político para empresas do setor
Ainda assim, o armazenamento de energia continua à margem da estrutura regulatória brasileira e essa situação tem um custo alto representado pelo desperdício de oportunidades de melhoria e eficiência do sistema, redução das perdas, estabilização das redes e, ainda, democratização do acesso à energia de qualidade.
Armazenar energia elétrica significa, essencialmente, transferir o uso da energia gerada em um momento para outro mais adequado. Isso pode ser necessário por razões técnicas, econômicas ou de segurança. Os SAE regulam frequência, ajudam na resposta rápida à demanda, viabilizam a operação de sistemas isolados e reduzem a necessidade de acionamento de usinas fósseis.
Em países como Estados Unidos, Austrália e Chile, embora ainda em estágios distintos de regulação, o armazenamento de energia já ocupa papel estruturante. Nestes lugares, os SAE participam de mercados de energia, são integrados à geração distribuída e ampliam a resiliência e a inteligência das redes. O Brasil, por sua vez, avança vagarosamente nessa área, mas não sem esforço.
Nesse sentido, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) tem promovido importantes iniciativas regulatórias para tratar a inserção dos SAE no setor elétrico nacional. Destacam-se, nesse processo, a Tomada de Subsídios 11/2020[1] e o Relatório de Análise de Impacto Regulatório 1/2023, que identificaram entraves centrais ao desenvolvimento dessa tecnologia, como a indefinição conceitual dos SAE (geração, carga ou nova categoria jurídica), a ausência de regras claras para outorga e o modelo de remuneração inadequado.
Diante da complexidade regulatória que envolve a inserção dos sistemas de armazenamento de energia elétrica no setor elétrico nacional, a Aneel estruturou um roadmap dividido em três ciclos, com o objetivo de avançar de forma progressiva e coordenada na construção de um arcabouço normativo que assegure clareza jurídica, eficiência econômica e viabilidade técnica.
O primeiro ciclo desse processo já foi iniciado e teve como marco central a abertura da Consulta Pública 39/2023[2], dedicada à formulação das bases conceituais e regulatórias iniciais. Nessa etapa, foram propostas medidas fundamentais, como a criação da figura do Armazenador Autônomo, a flexibilização dos critérios de outorga, o desenvolvimento de metodologias específicas para a contratação e tarifação do uso da rede e a previsão de empilhamento de receitas, permitindo que um mesmo sistema de armazenamento seja remunerado por múltiplos serviços prestados ao sistema elétrico.
As contribuições recebidas durante essa primeira fase foram expressivas e resultaram em aperfeiçoamentos relevantes. Um dos principais ajustes foi a revisão da proposta relacionada ao Montante de Uso do Sistema de Transmissão e Distribuição (MUST/D), que passou a admitir uma redução de até 15% do montante contratado em determinadas condições, como forma de refletir com mais precisão o perfil de uso bidirecional dos SAE.
Também houve avanço na definição de tarifas de uso da rede que evitem a bitributação da energia armazenada, reconhecendo o fluxo diferenciado característico dessa tecnologia. Além disso, reafirmou-se a necessidade de regras específicas para as usinas hidrelétricas reversíveis e para os modelos híbridos que integram geração e armazenamento.
Com o encerramento do primeiro ciclo da consulta pública e a publicação da Nota Técnica 266/2024 pela Aneel, o processo avançou para a segunda fase[3], que está sendo dedicada ao detalhamento de mecanismos operacionais mais sofisticados, incluindo o desenvolvimento de regras para a remuneração dos serviços ancilares prestados pelos SAE, a inserção desses sistemas nos modelos computacionais de planejamento energético e a definição do papel dos agregadores, agentes responsáveis por reunir diferentes fontes de energia distribuída, incluindo armazenamento, em uma única plataforma de operação coordenada.
Essa nova etapa, no entanto, foi marcada por um período de incerteza. Em maio de 2025, a saída do diretor-relator Ricardo Tili e a redistribuição do processo ao diretor substituto Daniel Cardoso Danna geraram apreensão quanto ao ritmo e à continuidade dos trabalhos, sobretudo diante da ausência de manifestações públicas sobre os próximos passos.
O cenário começou a se movimentar novamente em agosto de 2025, quando o processo regulatório instaurado pela Consulta Pública 39/2023 foi levado à deliberação da diretoria da Aneel. A reunião, realizada em 12 de agosto, esteve próxima de encerrar a segunda fase, mas a decisão foi adiada após pedido de vista formulado pelo diretor Fernando Mosna.
No cerne do impasse está a aplicação do princípio da causalidade de custos e do equilíbrio econômico-financeiro na definição das tarifas de uso dos sistemas de transmissão (TUST) e distribuição (TUSD).
O voto do relator, Diretor Daniel Danna, amparado em precedentes regulatórios e nas premissas expostas na Nota Técnica 13/2025[4], defendeu que o SAE Autônomo, ao operar ora como carga, ora como geração, realiza usos distintos da infraestrutura elétrica, devendo contratar e remunerar cada modalidade de uso separadamente, a exemplo do que ocorre com agentes de autoprodução e produtores independentes de energia. O diretor-geral Sandoval Feitosa ressaltou, ainda, a inexistência de duplicidade tarifária, uma vez que a cobrança se dá por serviços distintos e complementares.
Por sua vez, o diretor Fernando Mosna defendeu que a aplicação cumulativa das tarifas poderia gerar onerosidade excessiva e desproporcional, inviabilizando economicamente os SAE Autônomos. Propôs a análise de soluções regulatórias mais equilibradas, alinhadas às especificidades tecnológicas desses sistemas, sugerindo até mesmo uma transição regulatória para evitar distorções frente ao princípio da neutralidade tecnológica.
Apesar da divergência, houve convergência quanto ao enquadramento das baterias como Produtores Independentes de Energia (PIE), com outorga de 35 anos e flexibilização de até 30% na contratação de uso da rede para projetos colocalizados e de 5% para empreendimentos existentes.
Assim, diante da ausência de consenso e da complexidade técnica envolvida, a decisão final sobre a tarifação ficará para momento posterior, e o processo permanecerá suspenso até nova deliberação, sem data definida. A questão é central para a viabilidade econômica dos projetos, especialmente no modelo autônomo, e será determinante para consolidar esse novo capítulo na matriz elétrica brasileira.
O terceiro e último ciclo, ainda por vir, terá como foco o aperfeiçoamento das regras para a plena integração dos SAE em todos os segmentos da cadeia elétrica, abrangendo transmissão, distribuição e consumo. Espera-se que nessa etapa final seja apresentada uma minuta de Resolução Normativa que consolide as definições construídas ao longo do processo, permitindo a efetiva regulação da atividade e o ingresso formal desses sistemas no setor elétrico brasileiro.
Paralelamente, o Congresso discute o PL 1224/2022, que busca estabelecer um marco legal para os SAE. Embora bem-intencionado, o texto do projeto carece de atualização em relação aos avanços mais recentes da regulação setorial.
Ainda no âmbito legislativo, merece destaque a realização, em 2 de julho, do evento técnico promovido pela Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados sobre a inserção de sistemas de armazenamento de energia nos sistemas elétricos do Brasil[5]. A iniciativa reuniu especialistas, representantes do governo e do setor privado em torno de debates que evidenciaram o consenso sobre a urgência da regulamentação e a importância do alinhamento institucional para destravar os investimentos no setor.
Já no campo do planejamento, o Plano Decenal de Expansão de Energia 2034 (PDE 2034), elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), reconhece o valor estratégico dos SAE instalados atrás do medidor, principalmente quando associados à geração distribuída, para o gerenciamento da demanda, a redução de picos de consumo e o aumento da autonomia dos consumidores.
Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA
Para que esse potencial se concretize, será essencial o aprimoramento de mecanismos como tarifas horárias, binômias e sinais locacionais, que valorizem o uso eficiente da energia. Enquanto não houver atuação intencional, o mercado seguirá engessado. Projetos viáveis tecnicamente tenderão a continuar no papel e o potencial transformador do armazenamento de energia elétrica seguirá subaproveitado.
O Brasil já provou ser líder em geração de energia limpa, mas liderar exige mais do que produzir: é preciso modernizar. O armazenamento de energia não é mais tendência, e sim pilar estratégico para eficiência, estabilidade e flexibilidade do setor. Sem um marco regulatório sólido e funcional para os SAE, o país arrisca perder competitividade, comprometer a segurança energética e frear a transição. É hora de transformar promessas em resultados e tecnologia em política pública eficaz.
*
Este artigo foi elaborado com base nas informações disponíveis até 14 de agosto de 2025.
[1] Foram recebidas cerca de 651 contribuições que resultaram na elaboração da Nota Técnica 137/2022.
[2] O período para recebimento de contribuições públicas ocorreu de 24 de outubro a 8 de dezembro de 2023, e resultou em uma ampla participação setorial, com 817 contribuições enviadas por 79 agentes.
[3] O período para recebimento de contribuições públicas da segunda fase ocorreu de 12 de dezembro de 2024 a 30 de janeiro de 2025.
[4] Disponível em: https://antigo.aneel.gov.br/web/guest/consultas-publicas?p_p_id=participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet&p_p_lifecycle=2&p_p_state=normal&p_p_mode=view&p_p_cacheability=cacheLevelPage&p_p_col_id=column-2&p_p_col_pos=1&p_p_col_count=2&_participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet_ideDocumento=55945&_participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet_tipoFaseReuniao=fase&_participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet_jspPage=%2Fhtml%2Fpp%2Fvisualizar.jsp
[5] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NTVWl1zXXb4
PSR; SIGLASUL. Experiência internacional sobre recursos energéticos distribuídos. Rio de Janeiro: PSR; Siglasul, 2020. Relatório elaborado para a GIZ. Disponível em: https://www.epe.gov.br/sites-pt/areas-de-atuacao/cooperacao-internacional/ArquivosCooperacaoInternacional/PSR_GIZ_RED_Produto_1_2_Final.pdf. Acesso em: 13 jun. 2025.
PSR; SIGLASUL. Sistemas energéticos do futuro III – RED. Rio de Janeiro: PSR; Siglasul, 2022. Relatório final elaborado para a GIZ. Disponível em: https://www.epe.gov.br/sites-pt/areas-de-atuacao/cooperacao-internacional/ArquivosCooperacaoInternacional/Relatorio_GIZ_RED_RelatorioFinal.pdf. Acesso em: 13 jun. 2025.
ANEEL. Análise de Impacto Regulatório nº 1/2023 – SGM-SCE-STD-STE: regulamentação dos sistemas de armazenamento de energia elétrica. Brasília: Agência Nacional de Energia Elétrica, 2023. Disponível em: https://www2.aneel.gov.br/cedoc/air2023001sgm.pdf. Acesso em: 10 jun. 2025.
EPE. Plano Decenal de Expansão de Energia 2034 (PDE 2034). Brasília: Empresa de Pesquisa Energética, 2024. Disponível em: https://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/Plano-Decenal-de-Expansao-de-Energia-PDE. Acesso em: 10 jun. 2025.
EPE. Sistemas de armazenamento em baterias: aplicações e questões relevantes para o planejamento. Rio de Janeiro: Empresa de Pesquisa Energética, 2019. Disponível em: https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-441/EPE-DEE-NT 098_2019_Baterias%20no%20planejamento.pdf. Acesso em: 07 jun. 2025.
IRENA (2025), Renewable capacity statistics 2025, International Renewable Energy Agency, Abu Dhabi.