Embora o Ministério da Fazenda tenha conduzido uma Tomada de Subsídios genérica sobre a regulação de plataformas digitais, partes interessadas não tiveram visibilidade nem oportunidade de apresentar sugestões durante a preparação do texto do PL ou mesmo sobre o modelo regulatório escolhido. Além disso, não houve identificação de falhas de mercado específicas que demandem regulação, nem uma avaliação completa das diferentes dinâmicas de mercados digitais para expor quais problemas e quais mercados requerem intervenção. O relatório preparado pelo Ministério da Fazenda com base na Tomada de Subsídios discute apenas características gerais de plataformas digitais, sem uma avaliação de diferentes produtos/serviços e suas respectivas dinâmicas de mercado. Navegadores, mídias sociais, marketplaces, mecanismos de busca e sistemas operacionais são exemplos de plataformas digitais que operam sob modelos de negócios distintos e exibem dinâmicas de mercado muito particulares e que não foram analisadas.
No dia 18 de setembro, a Câmara dos Deputados recebeu o Projeto de Lei 4675/2025, encaminhado pelo Governo Federal. O PL altera a Lei nº 12529/2011 para dotar o CADE de novos poderes de impor regulação ex-ante a mercados digitais. Há um pedido pendente de apreciação pela Câmara para que o PL tramite em regime de urgência. Se aprovado, o pedido permitiria que o PL fosse enviado diretamente para votação pelo Plenário, sem passar pelas Comissões temáticas e discussões mais aprofundadas. Com isso, o Legislativo se defronta com uma questão crucial: o PL é realmente urgente?
Para responder a essa pergunta, não é necessário decidir se o PL 4675/2025 é bom ou ruim. Basta considerar se uma proposta que delega amplos poderes ao CADE para regular mercados digitais se beneficiaria de um debate mais aprofundado. Há pelo menos três boas razões que indicam que não há urgência e um debate mais detido seria benéfico.
Primeiro, o argumento a favor da urgência costuma partir da ideia de que mercados digitais estão estagnados ou dominados por monopólios incontestáveis. Para aqueles que defendem essa visão, cada dia sem regulação é uma oportunidade perdida para fomentar a concorrência e a inovação.
No entanto, o cenário brasileiro prova o contrário. Nosso país é um centro de crescimento e inovação em serviços digitais. De fintechs a e-commerce, a economia digital tem sido uma força motriz de transformação em vários setores no Brasil, beneficiando diretamente os consumidores com produtos e serviços de alta qualidade e constante inovação, além de criar milhares de empregos. Longe de serem estagnados ou monopolizados, o ambiente de negócios digitais do Brasil é vibrante e dinâmico, marcado por altas taxas de inovação e um notável grau de satisfação e engajamento de usuários.
De fato, mercados digitais são caracterizados por intensa inovação, e empresas líderes de mercado são constantemente desafiadas. Evidência recente dessa contestabilidade é o impacto transformador dos avanços na Inteligência Artificial (IA). Novas aplicações de IA estão, agora mesmo, revolucionando modelos de negócio, minando vantagens competitivas e desestabilizando cadeias de valor inteiras. Essa rápida evolução é prova de que a competição está florescendo, e clara indicação de que o mercado está operando em um ciclo de destruição criativa. Não há evidência empírica de falha estrutural generalizada que exija intervenção regulatória ampla e urgente.
Segundo, o Brasil tem um sistema robusto de defesa da concorrência sob a tutela do CADE, uma agência reconhecida internacionalmente por sua competência e expertise técnica. Com a Lei nº 12.529/11 como vigente hoje, o CADE já possui amplos poderes legais para investigar atos de concentração (fusões e aquisições) e condutas anticompetitivas, incluindo o poder de emitir medidas preventivas em casos de urgência comprovada.
Na prática, o CADE examina centenas de atos de concentração e dezenas de processos de condutas anticompetitivas todos os anos. O fato de o CADE ter iniciado relativamente poucas investigações envolvendo mercados digitais e adotado remédios em apenas pouquíssimos casos é evidência de que não há uma questão estrutural ampla que exija mudanças urgentes no arcabouço regulatório.
E caso haja problemas específicos de competição em determinados mercados digitais, o CADE está bem equipado para atuar usando as ferramentas existentes.
Terceiro, colocar o PL em regime de urgência impediria debates mais aprofundados com especialistas, representantes da indústria e da sociedade civil. Pegar um atalho não parece ser a melhor abordagem para tratar de um assunto que envolve complexidade significativa e que pode ter profundo impacto na inovação e no desenvolvimento econômico.
Por fim, um desafio central desse tipo de regulação é encontrar o equilíbrio certo entre a livre concorrência e custos regulatórios que podem sufocar o investimento, a inovação e desestimular novos serviços e produtos digitais no Brasil. No entanto, o PL não foi submetido a uma avaliação de impacto regulatório ou análise de custo-benefício. Em outras palavras, não foi realizada análise de benefícios previstos, possíveis efeitos negativos e custos da regulação para determinar se os benefícios superariam efeitos negativos e custos e, portanto, justificariam a introdução de uma nova regulação. O processo legislativo é o espaço apropriado para que todas essas discussões se desenvolvam e amadureçam.
Regulações bem-intencionadas, que não sejam precedidas por um debate robusto de seu impacto, podem acabar perdendo a oportunidade de resolver problemas reais e, ao mesmo tempo, criar custos desnecessários tanto para agentes privados quanto para o Estado e a sociedade em geral. Embora iniciativas regulatórias semelhantes em jurisdições como a União Europeia ainda estejam em estágios iniciais de implementação, há evidências de que os consumidores podem estar sendo prejudicados em certos casos, com perda de acesso a inovações e aumento da incerteza. De fato, há discussões em curso na Europa sobre um “pacote de simplificação digital” devido à crescente preocupação de que excessos regulatórios estejam sufocando a inovação e o crescimento. O Brasil tem a oportunidade de aprender com a experiência internacional, evitando erros e calibrando sua resposta.
Diante desse cenário, há muito a ser discutido no Congresso. O regime de urgência deve ser reservado para assuntos que envolvam a defesa da sociedade democrática e das liberdades fundamentais ou para tratar de medidas de enfrentamento a calamidades públicas. Nenhuma dessas situações está presente no caso do PL. Na verdade, o momento exige o oposto da urgência – a serenidade e profundidade de um amplo debate no Congresso. Somente por meio de uma discussão longa e transparente pode-se mitigar o risco de aprovar uma lei que, ao tentar “proteger” a concorrência, acabe por inibir o dinamismo do espaço digital brasileiro.
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