Os litígios fracionados representam, atualmente, uma das facetas mais perniciosas e economicamente danosas da litigância abusiva no cenário jurídico brasileiro.
Essa prática, que tem se consolidado como um desafio significativo, consiste na engenhosa estratégia de ajuizar múltiplas ações autônomas, cada qual destinada a discutir parcelas específicas ou aspectos isolados de um mesmo vínculo contratual ou relação jurídica subjacente. Tal fenômeno é particularmente prevalente e visível no setor de crédito consignado, onde a massa de contratos facilita a replicação dessas condutas.
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A consequência imediata e mais evidente dessa fragmentação processual é a desnecessária multiplicação de atos processuais, que, ao se somarem, geram impactos financeiros bilionários tanto para as instituições financeiras, que se veem compelidas a defender-se em inúmeros processos derivados de uma única questão, quanto para o próprio Poder Judiciário, que arca com os custos de uma estrutura inchada e ineficiente.
Estudos aprofundados, que se baseiam em análises meticulosas dos dados consolidados no relatório “CNJ em Números 2024”, apontam para um custo estimado para o Estado brasileiro com esse tipo de judicialização que supera a impressionante marca de R$ 10 bilhões.
Esse valor engloba uma série de despesas e ineficiências ocultas, incluindo o valioso tempo de trabalho de magistrados e servidores, a realização de audiências que se tornam redundantes pela repetição temática, a necessidade de perícias duplicadas que poderiam ser centralizadas, o envio de intimações repetidas a cada nova ação fragmentada, e, por fim, uma avalanche de recursos processuais.
O prejuízo financeiro, já por si grave, soma-se a um desgaste progressivo da imagem institucional do setor financeiro, e à crítica e insustentável sobrecarga do sistema de justiça, que vê sua capacidade de entregar uma jurisdição célere e eficaz comprometida.
Apesar da reconhecida gravidade e dos impactos sistêmicos do problema, o ordenamento jurídico brasileiro ainda padece de uma previsão legal específica que proíba expressamente a prática do fracionamento artificial de ações. Contudo, a ausência de uma norma explícita não impede – e na verdade impulsiona – que o combate a essa conduta seja feito de maneira robusta, com base em fundamentos processuais já existentes e plenamente aplicáveis.
O artigo 5º do Código de Processo Civil (CPC), por exemplo, é taxativo ao vedar o uso abusivo do processo, impondo a todas as partes o indeclinável dever de boa-fé processual. Adicionalmente, o artigo 80 do mesmo diploma legal é claro ao caracterizar como litigância de má-fé a propositura de demanda com o objetivo manifestamente espúrio de obter vantagem indevida, enquadrando perfeitamente a lógica por trás do fracionamento.
Além dos instrumentos normativos, a jurisprudência pátria tem demonstrado uma evolução consistente e progressiva no reconhecimento e combate a essa prática. Exemplos notáveis dessa evolução incluem a Nota Técnica 1/2022 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), que de forma pioneira classifica o fracionamento como uma conduta abusiva, servindo de baliza para outros tribunais.
Mais recentemente, o próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ), em um julgamento de grande relevância no âmbito do Tema Repetitivo 1198, reconheceu a premente necessidade de uma profunda racionalização do sistema judicial frente aos desafios impostos pela litigância massificada, abrindo caminho para que o fracionamento seja efetivamente contido.
Diante desse panorama jurídico e dos riscos inerentes, a atuação dos réus, particularmente as instituições financeiras que são alvo constante dessa estratégia, deve ser não apenas reativa, mas essencialmente estratégica e proativa. É fundamental que as defesas implementem uma série de medidas táticas, como a impugnação incisiva das demandas sob o argumento de litispendência (quando há ações idênticas já em curso) ou conexão (quando há causas semelhantes), visando a reunião dos processos.
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Deve-se também alegar de forma contundente a má-fé processual, com pedido expresso de aplicação das multas cabíveis, bem como a juntada de decisões anteriores já proferidas sobre o mesmo contrato ou relação jurídica, evidenciando a duplicidade. Crucialmente, é imperativo provocar o Poder Judiciário para que o caso seja remetido ao centro de inteligência do tribunal, órgão especializado em identificar e propor soluções para litígios de massa e condutas abusivas.
Mais do que configurar uma mera técnica de defesa jurídica, essa postura ativa e estratégica das instituições representa um compromisso inegociável com a integridade do processo e, em última análise, com a própria sustentabilidade e eficiência do sistema de justiça.
Combater o litígio fracionado não é apenas uma medida defensiva pontual, é defender, em sua essência, o acesso legítimo e eficiente à justiça, garantindo que os recursos do Judiciário sejam empregados naquilo que realmente importa. Essa luta está em estrita coerência com os princípios constitucionais fundamentais do devido processo legal e da duração razoável do processo, pilares de um sistema judicial justo e acessível a todos.