No passado, tivemos oportunidade de escrever no JOTA sobre os embates entre seguradoras, Susep e entidades de autogestão. Hoje, diante de uma nova realidade regulatória, é necessário revisitar o tema para uma nova reflexão.
A proteção veicular, por meio de associações mutualistas, é uma resposta à falha estrutural do mercado segurador. Em muitas regiões do país, e especialmente entre parcelas da população com menor poder aquisitivo, o acesso a seguros formais sempre foi limitado, tanto pelos altos custos quanto pela baixa penetração dos produtos convencionais.
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Nesse contexto, associações como a APVS (Associação de Proteção Veicular e Serviços Sociais) surgem como formas de organização coletiva para repartir riscos patrimoniais. Por meio do rateio entre os membros, essas entidades oferecem uma alternativa de proteção viável, baseada na solidariedade e no compromisso mútuo. Mais que uma inovação jurídica, trata-se de uma solução prática construída a partir das lacunas deixadas pelo sistema securitário tradicional.
A relevância dessas associações não se limita à esfera privada. Elas têm um papel social evidente: ampliam o acesso à proteção patrimonial e fortalecem o princípio da autogestão. Contudo, a recente reforma tributária (Lei Complementar 214/25), ao instituir a CBS e o IBS, levanta dúvidas quanto à tributação dessas entidades.
Este artigo analisa, sob a ótica da Análise Econômica do Direito, os impactos fiscais sobre as associações mutualistas. O foco é demonstrar por que a atividade desenvolvida por entidades como a APVS não configura prestação de serviço tributável e, portanto, não está sujeita à incidência da CBS/IBS.
A APVS, como associação civil sem fins lucrativos, não realiza atividade econômica no sentido clássico. Sua operação não envolve contraprestação onerosa nem circulação de mercadorias ou serviços. O que existe é a gestão de um fundo comum formado por contribuições voluntárias, destinado a cobrir os prejuízos individuais ocorridos entre os associados.
Diferenciar esse modelo das atividades típicas de mercado é essencial. A legislação atual — e o próprio conceito de fato gerador — exige que haja prestação de serviço ou venda de bens com finalidade lucrativa. No caso da APVS, esses elementos estão ausentes. Por isso, sua atividade não pode ser equiparada à de empresas seguradoras ou prestadoras de serviço.
Esse entendimento encontra amparo na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. No REsp 1.213.479/AL, o STJ entendeu que cooperativas médicas que apenas intermediam a relação entre médicos e pacientes não realizam fato gerador do ISS. A lógica é a mesma: quando não há prestação direta nem receita própria, não há base legal para a incidência do tributo.
O modelo mutualista pode ser ainda compreendido sob a ótica dos chamados mercados de dois lados, em que uma plataforma — no caso, a associação — conecta dois grupos distintos de usuários, promovendo interações econômicas sem necessariamente prestar um serviço direto.
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Nesse cenário, a função da associação é facilitar a coordenação e o equilíbrio financeiro entre os membros, sem auferir receita própria nem configurar relação de consumo. Essa lógica reforça o entendimento adotado pelo STJ, em que se reconheceu que a mera intermediação, desprovida de prestação direta, não configura fato gerador tributário.
Aplicar esse raciocínio à APVS reforça a tese da não incidência da CBS e do IBS. A associação atua como facilitadora do rateio entre seus membros e não como fornecedora de serviço. O valor arrecadado não configura receita própria, mas simples redistribuição entre os participantes, o que descaracteriza a materialidade do tributo.
Ademais, há um risco concreto de se configurar uma dupla tributação indevida. Caso o fisco pretenda tributar tanto a associação quanto a administradora — figuras distintas criadas pela LC 213/2025 — estaremos diante de um caso de bis in idem. O mesmo fato econômico — o rateio entre os associados— estaria sendo onerado duas vezes, o que afronta os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Mais grave ainda, a tributação excessiva pode inviabilizar uma atividade que cumpre função social. Ao encarecer o modelo mutualista, o sistema tributário desestimula uma solução legítima, que surgiu justamente para suprir a ausência de cobertura privada tradicional. Em termos econômicos, trata-se de uma intervenção que aumenta os custos de transação e enfraquece os mecanismos sociais de autorregulação.
Conclui-se, portanto, que a tributação da APVS pela CBS ou IBS carece de base legal e econômica. Trata-se de uma hipótese clara de não incidência, sustentada pela ausência de prestação onerosa e pela finalidade não lucrativa da entidade. Além disso, o modelo mutualista representa uma resposta eficiente e espontânea à falha de mercado, e sua preservação é de interesse público.