O Brasil concentra 98,5% das ações cíveis globais contra empresas aéreas, segundo levantamento da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear). Tal número é ratificado pelo diretor-presidente da Agência Nacional da Aviação Civil (Anac). Recentemente, durante evento para assinatura de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para redução da judicialização, foi mencionado pelo Diretor-Presidente que o país “representa cerca de 90% dos processos judiciais contra companhias aéreas de todo o mundo” e que tal judicialização “responde por entre 5 e 10% dos preços das passagens”.
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O Acordo de Cooperação Técnica nº 54/2025 foi firmado entre o CNJ, a Anac e a Secretaria de Aviação Civil do Ministério de Portos e Aeroportos. O acordo prevê o compartilhamento de dados sobre atrasos e cancelamentos de voos, a integração de sistemas tecnológicos para soluções consensuais de conflitos, além da realização de eventos, capacitações e campanhas educativas voltadas à melhoria da governança e da prestação de serviços.
A questão tem se mostrado um problema recorrente. Olhando de maneira retrospectiva, segundo dados do próprio CNJ, apenas em 2018 foram ajuizadas 64 mil ações por consumidores contra empresas aéreas. Em 2019, esse número subiu para 109 mil. Em 2023, dados divulgados pela Associação Internacional de Transportes Aéreos indicavam a existência de cerca de 164 mil processos em curso. As principais queixas envolvem atraso e cancelamento de voos, extravio de bagagem e overbooking.
O excesso de judicialização afeta não apenas as empresas, mas também os consumidores. Os custos decorrentes das demandas acabam sendo repassados, direta ou indiretamente, nas tarifas e na redução de rotas (por exemplo, com a descontinuidade de trechos das malhas aéreas devido ao grande número de processos judiciais distribuídos em Rondônia e no Amazonas).
Diante desse contexto, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu novo tema de repercussão geral (Tema 1.417) que discutirá se a responsabilidade do transportador aéreo pelo dano decorrente de cancelamento, alteração ou atraso do transporte contratado deve ser regida pelo Código Brasileiro de Aeronáutica ou pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC)[1]. A alta litigiosidade no setor foi um dos fundamentos para reconhecimento do novo tema de repercussão geral, que abre espaço para a revisão ou, ao menos, para a limitação do atual entendimento sobre a ausência de teto para danos morais[2].
O problema, contudo, não deve ser lido apenas pela lente do judiciário, mas também como sintoma de uma fragilidade estrutural da governança regulatória no país. A Anac, que tem papel central no equilíbrio entre proteção do usuário e sustentabilidade econômica das empresas, vem operando sob forte restrição orçamentária e de pessoal, o que naturalmente limita sua capacidade de atuação regulatória. O orçamento aprovado para 2025 (R$ 105,8 milhões) permanece 12,5% abaixo do originalmente previsto e essa retração reforça o impacto negativo da perda de quadros técnicos e da limitação da autonomia decisória da agência.
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Esse cenário de desvalorização institucional estende-se além da Anac e atinge um padrão mais amplo de restrição de recursos e perda de capacidade técnica em várias agências reguladoras e outros órgãos no Brasil. A combinação entre restrição de recursos, déficit de pessoal especializado e enfraquecimento do aparato técnico compromete a capacidade de exercer uma regulação capaz de antecipar conflitos e não apenas reagir a eles no Poder Judiciário. Sem isso, a política pública se fragiliza, e o contencioso tende a se multiplicar.
A escalada de litígios no setor aéreo compromete a previsibilidade e eleva os custos da atividade, com impactos sobre a competitividade e a sustentabilidade do setor. A superação desse quadro depende de uma atuação coordenada entre os órgãos reguladores, o Poder Judiciário e os agentes do mercado, de modo a identificar oportunidade de aprimoramento das políticas públicas e de fortalecimento da confiança no sistema.
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[1] ARE 1.560.244 RG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso (Presidente), j. em 22.08.2025 (tema 1.417). Após reconhecimento da RG, o ARE foi distribuído ao Min. Dias Toffoli.
[2] RE 1.394.401, Rel. Min. Rosa Weber (Presidente), j. em 15.12.2022 (tema 1.240).

