Entre os dias 8 e 17 de julho, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI ou WIPO, em inglês) recebeu na sua sede, em Genebra, mais de 1.600 pessoas, representando os 194 Estados-membros e organizações não governamentais para a sua 66ª Assembleia Geral. Foi a maior AG em número de participantes há tempos.
Dentre os representantes, 40 ministros de Estado e chefes de quase 100 escritórios de PI de todo mundo estavam presentes, incluindo comitiva do INPI[1]. Também estive lá e acompanhei os dez dias de discussão, representando a Associação Brasileira de Propriedade Intelecual (ABPI), na qual integro o Conselho Diretor.
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Nesta coluna, trago aos leitores do JOTA os principais assuntos debatidos no evento. Considerando que a WIPO é um hub global da propriedade intelectual, este relato pode trazer alguns insights sobre a organização e a importância política, econômica e global da propriedade intelectual.
A WIPO sob as lentes da 66ª AG
A previsão de criação de uma entidade de cooperação internacional em direitos de PI remonta aos primeiros tratados internacionais: a Convenção de Paris (1883) e de Berna (1886). Reconhecia-se o caráter internacional dos ativos protegidos, bem como a necessidade de sistematização das regras nacionais.
Contudo, a WIPO somente foi criada em 1967. Hoje figura como agência especializada da Organização das Nações Unidas (ONU). Atualmente, a entidade conta com 194 Estados-membros – o Brasil se juntou em 1975. Para além dos Estados, participam da WIPO 250 entidades não governamentais ou intergovernamentais, na condição de observadores.
A administração de tratados internacionais é função primeira da entidade. Atualmente, a WIPO administra 28 tratados relacionados à propriedade intelectual, dos quais 13 estão vigentes no Brasil. Dois desses diplomas foram concluídos em 2024 – fato excessivamente comentado durante a AG.
A celebração se deu porque os tratados adotados pela WIPO devem ser baseados no consenso. Logo, a conclusão do Tratado Internacional sobre PI, Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais (maio de 2024) e do Tratado de Riad para Designs (novembro de 2024) é tida como vitória do multilateralismo e da capacidade de negociação entre nações, algo que não se vê em outros órgãos da ONU atualmente.
Mas nem tudo é concordância. Países se organizam em diferentes grupos de afinidade e colocam suas manifestações de forma conjunta, na maioria das vezes. As posições divergentes e os contornos da geopolítica internacional se fizeram sentir e impuseram trabalho extra aos diplomatas presentes. Houve intenso debate em temas orçamentários e atritos sobre qual deve ser o papel da WIPO no contexto de efetivação dos objetivos de desenvolvimento da ONU.
Manifestações para além de temas de PI também emergiram, com falas da Ucrânia e Rússia, Irã e Israel, além de divergências entre EUA e China sobre a admissão de novo observador. Restou claro, portanto, que a propriedade intelectual e a WIPO não são uma bolha no contexto do resto do mundo.
Outra singularidade da WIPO é a questão orçamentária. A gestão dos sistemas internacionais de registro de patentes (Tratado PCT[2]), marcas (Tratado de Madri), desenhos industriais (Tratado de Haia) e indicações geográficas (Tratado de Lisboa), bem como a administração de serviços de arbitragem e mediação de disputas em propriedade intelectual, permitem à entidade obter receitas pelos serviços prestados e, assim, não estar totalmente dependente de aportes dos Estados-membros ou de sua influência individual.
Por conta destes serviços, a WIPO consegue ainda, por assim dizer, mensurar a inovação global – e a boa notícia é que ela cresce consistentemente. Os depósitos de patente, marcas e desenhos industriais aumentaram na proporção de 0,5%, 1,2% e 6,8% em comparação com ano anterior. O sistema de solução de controvérsias cresceu sua atuação em 25%.
É impressionante pensar que são 40 registros de PI realizados por minuto, com mais de 20 milhões de depósitos por ano desde 2018 (números 150% maiores que 2010). Também surpreende o faturamento da WIPO, superior a 495 milhões de francos suíços em 2024, em função desse portfólio de serviços. Em comparação, os Estados Federados da Micronésia, último membro admitido nesta AG, teve PIB de 370 milhões de francos suíços em 2023. É um orçamento considerável e com peso para avançar em diferentes projetos, mesmo que nem sempre aqui exista consenso.
Policymaking em PI: dados e diversidade
Seja no papel de gestora dos sistemas de registro ou em razão dos diferentes estudos e relatórios produzidos, a WIPO se consolida cada vez mais como fonte de dados e insights em inovação e PI. Esse material serve a diferentes propósitos para governos, empresas e instituições.
Pelos depósitos realizados via PCT, há informação de que 1/3 das mais de 3 milhões de patentes depositadas a cada ano se referem a tecnologias digitais, como IA, computação quântica, IoT ou segurança cibernética.
O estudo sobre ativos intangíveis deste ano, divulgado na AG[3], traz informação de que investimentos nestes ativos superam em quatro vezes os montantes aportados em ativos tangíveis e já alcançaram US$ 80 trilhões no ano passado. Em softwares, os dados revelam que houve US$ 675 bilhões de investimentos em 2024; o Brasil está na 11ª posição (US$ 8,1 bilhões)[4].
Software, base de dados, marcas, P&D e know-how são os principais focos destes investimentos. Constata-se que há uma transformação substancial em curso na forma como a inovação industrial será o futuro. Há também a percepção de valor da chamada economia criativa, com exemplo do setor de videogames, que já fatura US$ 200 bilhões anualmente.
Há ainda o Global Innovation Index, publicado anualmente[5]. Por meio de metodologia própria da WIPO, o projeto gerou ranking de inovação para mais de 133 países. Ali é possível identificar avanços e fraquezas de cada país, permitindo a governos tomar decisões fundamentadas e estruturar políticas públicas de inovação com mais embasamento. Outros estudos setoriais, indicadores e relatórios de tendências são apresentados pela WIPO periodicamente.

Finalmente, cabe uma palavra sobre diversidade de gênero na WIPO. São perceptíveis esforços no sentido de inclusão da entidade (60% das contratações de 2024 foram mulheres) e espaço na agenda iniciativas voltadas à temática com criação de Plano de Ação 2023 para promover avanço feminino em PI e criação de Política de Igualdade 2024-2027.
Foi grata também a constatação do grande número de mulheres nas delegações presentes na AG com oportunidades de fala e representações de países dos diferentes continentes. Se comparada com eventos no Brasil, neste quesito, a AG da WIPO é um real avanço.
Em alta | junho e julho.25
- Brasil. O INPI publicou Portaria para regular possibilidade de registro de marcas que tenham obtido distintividade adquirida (ou secondary meaning). O conceito se relaciona a situações nas quais uma determinada expressão ou imagem genérica passa a ser reconhecida pelo público como símbolo capaz de identificar determinado produto ou serviço em razão do seu uso reiterado. A regulamentação do tema há muito estava em debate e esta é uma possibilidade existente em diferentes jurisdições. Caberá ao interessado alegar a distintividade que sua marca obteve pelo uso, tanto para novos pedidos quanto para marcas em processo de registro. A nova Portaria entra em vigor no próximo dia 28 de novembro[6].
- Mercosul e EFTA. Foi anunciada conclusão do tratado de livre comércio entre Mercosul e EFTA (Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein). O texto final deve ser publicado até setembro. No fact sheet apresentado pelo Itamaraty[7], a indicação é de que o capítulo de PI consolida padrões internacionais e não alterará normas brasileiras. Quanto às indicações geográficas, 63 IGs brasileiras serão reconhecidas pelos países EFTA.
- Global. A plataforma Deezer se tornou a primeira a criar mecanismos de identificação de músicas que tenham sido geradas por inteligência artificial[8]. Estas músicas conterão “etiqueta” e permitirão aos usuários identificarem diferenças entre composições humanas ou criadas por máquinas. Com 18% de músicas geradas por IA sendo inseridas na plataforma por dia (mais de 20 mil títulos), a proposta da Deezer é também reduzir alcance destas músicas, que não serão inseridas em listas de recomendações ou playlists. Com 70% de fake streams, a Deezer entende que tais músicas têm o objetivo de obter receitas de royalties indevidamente.
- Brics. O encontro do Brics no Brasil reforçou a visão do bloco para necessidade de uma governança multilateral, inclusiva e sustentável para desenvolvimento e uso de sistemas de IA. No que se refere à propriedade intelectual, o posicionamento defende necessária abordagem equilibrada para proteger PI e salvaguardar o interesse público, ressaltando a necessidade de proteção adequada a direitos autorais contra utilização não autorizada “a fim de evitar a extração abusiva de dados e a violação da privacidade, permitindo mecanismos de remuneração justa”[9].
- São Paulo. A secretaria de Cultura, Economia e Indústrias Criativas do governo paulista lançou plano de desenvolvimento da indústria de games[10] para se consolidar como referência global no setor. Estão previstos R$ 8,2 milhões em investimentos para apoiar desenvolvimento, finalização e publicação de jogos eletrônicos, além de outros valores em linha de crédito para estúdios independentes.
- EUA. No fim de junho, duas decisões da Justiça da Califórnia[11] confirmaram que o uso de obras acessadas online sem conhecimento ou autorização dos autores para treinamento de sistemas de IA não configuraria infração aos direitos autorais. Nestes casos, as rés Meta e Anthropic obtiveram sua primeira vitória nas cortes americanas, com argumento de exceção de fair use para tais usos de obras, ainda que tal acesso tenha ocorrido por meio de sites de compartilhamento de arquivos. Tramitam nos EUA dezenas de ações judiciais que tratam do tema, mas tais decisões trarão reflexões às futuras sentenças.
[1] Detalhes sobre a participação do INPI estão disponíveis em: INPI conclui participação na Assembleia Geral da OMPI com resultados expressivos — Instituto Nacional da Propriedade Industrial.
[2] Estes tratados permitem que o interessado obtenha, por meio de um único pedido, proteção em diferentes países para patentes (158 países), marcas (131 países), desenhos industriais (99 países) ou indicações geográficas (44 países).
[3] O World Intangible Investment Highlights 2025 teve lançamento no segundo dia da AG com a presença do embaixador brasileiro Guilherme Patriota e do presidente do INPI, Júlio Moreira, diante da inserção do Brasil nesta edição. O estudo está disponível em https://www.wipo.int/web-publications/world-intangible-investment-highlights-2025/en/
[4] Dados consolidados no relatório disponível em https://www.wipo.int/en/web/global-innovation-index/w/blogs/2025/global-software-spending
[5] Escrevi uma série de 5 artigos sobre o relatório, que foram publicados aqui no Jota, em 2024, quando o Brasil obteve o 50º lugar. Você os encontra neste link: https://www.jota.info/autor/ana-carolina-cagnoni-ribeiro.
[6] Texto oficial do INPI disponível em https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/noticias/inpi-publica-portaria-que-regulamenta-a-distintividade-adquirida-de-marcas-entenda
[7] Informações disponíveis em https://www.gov.br/mdic/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/documentos/acordo-mercosul-efta/factsheet-acordo-mercosul-efta.pdf#:~:text=O%20Acordo%20MERCOSUL%2DEFTA%20conforma,principais%20mercados%20do%20continente%20europeu.
[8] Publicação da Deezer sobre o tema disponível em https://newsroom-deezer.com/2025/06/deezer-just-rolled-out-the-world-s-first-ai-music-tagging-system/
[9] Declaração integral disponível em https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-dos-lideres-do-brics-sobre-governanca-global-da-inteligencia-artificial#:~:text=A%20Intelig%C3%AAncia%20Artificial%20(IA)%20representa,o%20planeta%20de%20maneira%20concreta.
[10] Maiores informações sobre o Programa disponíveis em https://www.agenciasp.sp.gov.br/governo-de-sp-lanca-plano-de-desenvolvimento-da-industria-de-games-para-consolidar-o-estado-como-referencia-global-no-setor/
[11] Comentários sobre a decisão do caso contra a Anthropic disponível em https://www.theguardian.com/technology/2025/jun/25/anthropic-did-not-breach-copyright-when-training-ai-on-books-without-permission-court-rules e sobre a decusão do caso conta a Meta disponível em https://www.theguardian.com/technology/2025/jun/26/meta-wins-ai-copyright-lawsuit-as-us-judge-rules-against-authors