A ministra Cármen Lúcia é uma das únicas três mulheres que, desde 1891 (data de instalação do Supremo Tribunal Federal), foi nomeada para compor o órgão de cúpula do nosso Poder Judiciário. Uma em três mulheres e ao longo de 134 anos de história. A primeira quebra de paradigma veio com a chegada da ministra Ellen Gracie em 2000. Em 2006, foi a vez da ministra Cármen Lúcia tomar um assento na corte e, em 2011, a da ministra Rosa Weber.
As primeiras providências para acolher as ministras do STF aconteceram há 25 anos. Foram necessárias, inclusive, mudanças na estrutura física do prédio-sede, como a construção de um banheiro feminino próximo ao plenário. Até então, a ausência dele era algo que passava completamente despercebida. Sob vários aspectos e perspectivas, o fato de se ter uma mulher na corte tornou-se um feito histórico e um marco institucional da maior relevância.
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Subsiste, contudo, uma alteração a ser implementada: o emprego do gênero feminino na flexão de um substantivo utilizado com bastante frequência. Ainda nos dias atuais, todos os registros referentes aos processos de relatoria da ministra Cármen Lúcia a identificam como “relator” e não como “relatora”.
Essa inflexão também é percebida nas listas de processos que foram incluídos no calendário de julgamentos presenciais. Quanto aos casos que são apreciados nas sessões virtuais, há uma nova constatação: os votos dos demais ministros aparecem como “Acompanho o relator” ou “Divirjo do relator”. Nada mais excludente.
Considerando que a presença dessas três mulheres no STF não é um fenômeno tão recente e que se deu em um período de acentuada modernização e constantes avanços civilizatórios, seria intuitivo pensar que – a essa altura – o processo de adaptação da corte já estaria superado. Não é o que vemos na prática. A falta de flexão para o gênero feminino de palavras tão corriqueiras no vocabulário do STF denota que ainda temos um longo caminho pela frente quanto à aceitação de mulheres nos espaços de poder e de tomada de decisão.
O correto uso da linguagem está longe de parecer um problema de menor importância. Exige de nós, profissionais que atuam perante o tribunal e acadêmicos que estudam temas afetos a direitos humanos, especial atenção. É possível enumerar múltiplas razões pelas quais esse tipo de desafio deveria se tornar uma prioridade de todos e todas, mas irei me concentrar na perspectiva do seu impacto na desigualdade entre homens e mulheres.
A linguista Robin Lakoff foi uma das primeiras a desbravar as pesquisas sobre a relação entre gênero e linguagem. No clássico artigo “Language and woman’s place”, escrito ainda em 1973, a professora estadunidense alertava para o que, hoje, parece ser uma obviedade: “[o]s desequilíbrios linguísticos merecem ser estudados porque colocam em evidência os desequilíbrios e as desigualdades do mundo real. Eles são indícios de que alguma situação externa precisa ser alterada (…)”. E também observava: “a mudança social cria mudança linguística, não o inverso”.[1]
A partir dessa análise, fica ainda mais claro que a distorção linguística percebida na forma como o próprio STF se refere à ministra Cármen Lúcia (no gênero masculino) é só mais uma marca do desequilíbrio na composição da corte. Transcorridos mais de cem anos desde a sua instalação, a proporção de mulheres no tribunal virou uma estatística da qual não podemos nos orgulhar. Do total de 171 membros, elas representam só 1,75%[2], ou seja, os homens são 98,25% da histórica formação do órgão de cúpula da Justiça brasileira.
Atualmente, a ministra Cármen Lúcia é a única voz feminina entre dez homens, mas é importante frisar que não chegou ontem. Compõe a corte há quase duas décadas e já exerceu a presidência tanto do STF como do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – por duas vezes, diga-se de passagem. Por que, então, a mudança social todavia não provocou a tão esperada mudança linguística? Note-se que essa injustificada resistência acaba indo na contramão de várias tendências atuais.
Inúmeras são as iniciativas advindas do próprio sistema de justiça que transparecem a preocupação com a equidade de gênero e são voltadas para a preservação de direitos e garantias de meninas e mulheres.
Um exemplo é o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[3]–[4]. O TSE, por sua vez, também lançou o Guia de Linguagem Inclusiva para Flexão de Gênero, esperando contribuir “para uma comunicação social atenta às novas realidades, com o propósito de minimizar estereótipos e preconceitos[5]” no contexto das eleições.
O movimento faz parte de uma construção coletiva que irradia de diferentes órgãos e entidades que compõem o nosso tecido social. A Secretaria de Comunicação Social do Senado igualmente disponibiliza um Manual de Comunicação[6] e vai além, avançando na distinção entre orientação sexual e identidade de gênero, mais uma camada importante da linguagem inclusiva. Além disso, o debate ganhou força na Universidade Federal do Paraná (UFPR), que redigiu o Guia da linguagem não sexista[7], um desdobramento do “Projeto GUIAS para um mundo MELHOR”.
Esses documentos convergem no mesmo objetivo: romper com a lógica semântica que concorre para a invisibilidade das mulheres e ajuda a perpetuar a desigualdade de gênero. Por não se tratar de algo meramente simbólico, muitas pesquisas têm se dedicado a medir o efeito do gênero gramatical na representação mental de homens e mulheres, isto é, a fornecer dimensões específicas sobre os impactos psicológicos e sociológicos da linguagem na maneira como percebemos homens e mulheres. Partem da premissa de que “a linguagem não atua apenas como um veículo para crenças, mas também como uma ferramenta que as constrói”[8].
É oportuno observar que, em alguns casos, esses estudos têm sido conduzidos apenas por homens, que combatem o uso do masculino genérico por acreditarem que serve à manutenção do que se chama de sexismo gramatical.[9]
Essa aliança entre homens e mulheres sempre rendeu bons frutos. Vejam que a ministra Cármen Lúcia foi quem instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Judiciário (Resolução 255/2018[10]), mas foi na gestão do ministro Dias Toffoli à frente do CNJ que se disponibilizou o relatório “Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário”[11], trazendo relevantes “dados sobre a atuação feminina no Poder Judiciário nos últimos 10 anos (entre 1º de janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2018)”.
A partir dessas sementes, outro estudo nacional ajudou a jogar ainda mais luzes sobre o assunto, investigando a participação feminina nos concursos para a magistratura[12]. Apurou-se, por exemplo, que, na Justiça Militar, “não foi encontrada em qualquer certame a presença de mulheres nas comissões organizadoras ou nas bancas examinadoras”. A necessidade de se examinar melhor a questão racial também se tornou premente e resultou na “Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário[13]”.
Em 2023, publicou-se o relatório Participação Feminina na Magistratura[14], que buscou “responder alguns dos questionamentos realizados pelo grupo de trabalho responsável por redesenhar a Política Nacional de Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário”.
Confirmou-se que as Justiças Federal e Militar seguiam apresentando resultados negativos em relação ao parâmetro nacional; e, em 2024, o relatório “Justiça em Números” de 2024[15], no qual o CNJ divulgou que “[o] perfil étnico-racial da Justiça aponta a presença de 14,3% de negros e negras na magistratura”, enquanto “[a] participação feminina na magistratura, até o final de abril de 2024, é de 36,8%”.
Apesar dos avanços, quando se analisa os cargos de forma separada, verifica-se que só 18,8% são ministras, 23,9% desembargadoras e 39% juízas de 1º grau. Atenta a essa disparidade, a ministra Rosa Weber, então presidente do STF e do CNJ, editou a Resolução 525/2023, com vistas a promover a equidade de gênero nas promoções de magistrados e magistradas e no acesso aos tribunais de 2ª instância. A norma foi aprovada pelo CNJ em decisão histórica e por unanimidade[16].
Assim, a referida regra vale para todas as vagas abertas desde 1º de janeiro de 2024, de modo que, enquanto não for alcançada “a proporção de 40% a 60% por gênero, as vagas pelo critério de merecimento serão preenchidas por intermédio de editais abertos de forma alternada para o recebimento de inscrições mistas, para homens e mulheres, ou exclusivas de mulheres (…)[17]”.
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Sob a gestão do ministro Luís Roberto Barroso, sobreveio mais um passo importante na busca por equidade. A Resolução 540/2023[18] enuncia que os órgãos do Judiciário devem contemplar, sempre que possível, no mínimo 50% de mulheres em cargos de chefia e assessoramento, na composição de comissões, comitês, grupos de trabalho, nas mesas de eventos institucionais, na contratação de estágio e empresas prestadoras de serviço terceirizado.
É inegável reconhecer que houve avanços significativos em relação ao enfrentamento das desigualdades estruturais que assolam a convivência em sociedade e impedem a maior participação feminina na implementação da Justiça.
Para que essa construção seja ainda mais efetiva, o STF precisa dar a sua contribuição e ajustar o óbvio. É preciso proceder com a flexão de gênero sempre que cabível. A ministra Cármen Lúcia é relatora dos processos que lhe foram distribuídos e os demais ministros poderão acompanhar ou divergir da relatora nas deliberações colegiadas. Do contrário, a única voz feminina da corte continuará sendo, em grande medida, sufocada.
[1] LAKOFF, Robin. Language and Woman’s Place. Language in Society 2, n. 1, pp. 45-79 (1973), p. 73; p. 76. Disponível em <http://dx.doi.org/10.1017/S0047404500000051>. Acesso em 22 ago. 2025.
[2] Disponível em <https://portal.stf.jus.br/ostf/ministros/ministro.asp?periodo=STF&consulta=ALFABETICA>. Acesso 22 ago. 2025.
[3] “O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero após a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) no caso Márcia Barbosa de Souza e outros vs.Brasil, sentença que está disponível nos painéis de acompanhamento da Unidade de Monitoramento e Fiscalização (UMF) das Decisões e Deliberações da Corte IDH”. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero/>. Acesso em 22 ago. 2025.
[4] No prefácio do Protocolo, consta a seguinte observação: “(…) este protocolo é mais um instrumento para que seja alcançada a igualdade de gênero, Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – ODS 5 da Agenda 2030 da ONU, à qual se comprometeram o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça”. Conselho Nacional de Justiça. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Brasília: Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – Enfam, 2021. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero-cnj-24-03-2022.pdf>. Acesso em 22 ago. 2025.
[5] Disponível em <https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/arquivos/tse-guia-de-linguagem-inclusiva/@@display-file/file/Guia%2520de%2520Linguagem%2520Inclusiva%2520TSE_mar-2023.pdf>. Acesso em 22 ago. 2025.
[6] Disponível em <https://www12.senado.leg.br/manualdecomunicacao/estilos/linguagem-inclusiva>. Acesso em 22 ago. 2025.
[7] Guia da linguagem não sexista. Org. Gheysa Caroline Prado, Carolina Daros, Claudia Zacar. Curitiba, UFPR, 2021. Disponível em <https://acervodigital.ufpr.br/xmlui/bitstream/handle/1884/69661/1_Versa%cc%83oFinal_Guia-LinguagemNaoSexista.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em 22 ago. 2025.
[8] A título de exemplo, confira-se: GYGAX, Pascal Mark; ELMIGER, Daniel; ZUFFEREY, Sandrine; GARNHAM, Alan; SCZESNY, Sabine; STOCKHAUSEN, Lisa von; BRAUN, Friederike; OAKHILL, Jane. A Language Index of Grammatical Gender Dimensions to Study the Impact of Grammatical Gender on the Way We Perceive Women and Men. In Frontiers in Psychology vol. 10, article 1.604, July 2019. Disponível em <https://doi.org/10.3389/fpsyg.2019.01604>. Acesso em 22 ago. 2025.
[9] MÄDER, Guilherme Ribeiro Colaço. Masculino genérico e sexismo gramatical. Dissertação (mestrado). Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 2015.
[10] Com ela, foram adotadas medidas que estão sendo monitoradas no bojo do Procedimento Acompanhamento de Cumprimento de Decisão (Cumprdec) 0003286-78.2021.2.00.0000. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/politica-de-participacao-feminina/>. Acesso em 22 ago. 2025.
[11] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário. Brasília: CNJ, 2019. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/08/relatorio-participacaofeminina.pdf>. Acesso em 2 fev. 2025.
[12] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. A Participação Feminina nos Concursos para a Magistratura. Brasília: CNJ, 2020. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB_RELATORIO_Participacao_Feminina-FIM.pdf>. Acesso em 2 fev. 2025.
[13] O documento também teve sua razão de ser no contexto da Portaria n. 108/2020, que criou o Grupo de Trabalho destinado a elaborar estudos e indicar soluções para a formulação de políticas judiciárias sobre igualdade racial, e da Resolução n. 203/2015, que reservou aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos no Judiciário e ingresso na magistratura. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário. Brasília: CNJ, 2021. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB_RELATORIO_Participacao_Feminina-FIM.pdf>. Acesso em 2 fev. 2025.
[14] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Participação Feminina na Magistratura. Brasília: CNJ, 2023. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/08/participacao-feminina-na-magistratura-v3-31-08-23.pdf>. Acesso em 2 fev. 2025.
[15] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2024. Brasília: CNJ, 2024. Disponível em <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/05/justica-em-numeros-2024.pdf>. Acesso em 2 fev. 2025.
[16] Disponível em <https://www.cnj.jus.br/cnj-aprova-regra-de-genero-para-a-promocao-de-juizes-e-juizas/>. Acesso em 2 fev. 2025.
[17] Disponível em <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5277>. Acesso em 5 fev. 2025.
[18] Disponível em <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5391>. Acesso em 5 fev. 2025.