Em novembro, o Supremo Tribunal Federal inovou sua jurisprudência ao admitir, pela primeira vez, a instauração de um Incidente de Assunção de Competência (IAC) no âmbito de uma reclamação constitucional[1].
As reclamações, ações autônomas de competência originária do Supremo, são julgadas, por previsão regimental[2], em suas duas turmas. Mas o crescimento vertiginoso do número de reclamações que chegam ao tribunal nos últimos anos[3], cujas causas são discutidas a seguir, além de aumentar a relevância do instrumento no mundo jurídico, criou um desafio ao destinar a última palavra a dois órgãos julgadores distintos.
Embora não houvesse vedação a que reclamações pudessem, por decisão do relator ou circunstâncias especiais (como, por exemplo, a relatoria anterior do presidente do tribunal, que não integra nenhuma das turmas), ser julgadas pelo plenário do tribunal, não havia nenhum instrumento apto a dirimir eventual divergência entre as turmas, como os embargos de divergência, inaplicáveis ao instrumento. E com o volume e a relevância dos assuntos tratados em sede de reclamação, essas divergências se tornaram um problema.
Por um lado, como bem observaram Ciro Grynberg e Luísa Lacerda[4], a reclamação é um instrumento cada vez mais utilizado para interpretar os precedentes vinculantes do Supremo, e inclusive para expandir o seu alcance e emprestar-lhes novos sentidos.
Foi o que ocorreu, por exemplo, com o tema da pejotização, a contratação de indivíduos para prestação de serviços através de pessoas jurídicas, que o Supremo passou a endossar, de forma majoritária, em reclamações que indicavam violação à ADPF 324 e ao Tema 725 da Repercussão Geral, que tratavam originalmente da licitude da terceirização da atividade-fim[5].
Nesse contexto, a divergência entre as turmas tem o potencial de gerar ampla insegurança jurídica quanto ao significado e o alcance dos precedentes vinculantes do STF. Por outro lado, a divergência pode levar à adoção de soluções conflitantes em casos concretos análogos, principalmente em temas recorrentes no STF, o que por sua vez gera outro tipo de insegurança jurídica, que deve ser igualmente endereçada. Essas circunstâncias foram chave para que o Supremo sancionasse a utilização do IAC.
Até chegar ao ponto de discutir e sancionar a possibilidade de propositura do IAC em sede de reclamação, o Supremo percorreu um longo caminho. Há mais de uma década, uma breve nota publicada no site do STF, intitulada “Reclamação constitucional garante a preservação da competência do STF” apresentava um instituto processual até então pouco conhecido do público jurídico.[6].
A nota trazia informações sobre a natureza do instituto (ação originária do STF), suas hipóteses de cabimento (preservar a competência do STF, garantir a autoridade das decisões do STF e garantir a autoridade das súmulas vinculantes), e a competência para seu julgamento (originalmente do plenário e, após alteração regimental, majoritariamente das turmas). Em meio aos dados, um se destacava: em julho de 2014, meses antes da promulgação do novo Código de Processo Civil, tramitavam no STF aproximadamente 3.000 reclamações[7].
O número era expressivo na série histórica. Entre 2000 e 2015, as reclamações propostas anualmente no STF saltaram da casa das 500, nos anos 2000, para a casa das milhares, nos anos 2010. 2015 marcou o ápice dessa série, com pouco mais de 3.200 reclamações propostas em um único ano. Mas o início de nova década levaria os números das reclamações a outro patamar. Em 2020, os números de 2015 já haviam dobrado e ultrapassaram as 6.500 reclamações. Em 2024, novo ápice: mais de 10 mil reclamações propostas em um único ano[8].
A explosão das reclamações possui múltiplas explicações. O CPC de 2015 regulamentou de forma definitiva o instituto, expandindo o seu cabimento e esclarecendo a sua aplicabilidade para as teses vinculantes decididas pelos tribunais. Na década seguinte, essas teses se tornaram cada vez mais prevalentes, a partir dos incentivos do próprio CPC.
O Brasil adotou, quase sem perceber, um sistema de precedentes vinculantes no qual a consequência pelo descumprimento das decisões é a reclamação com o condão de anular a decisão ofensiva[9]. Por um lado, a própria sistemática convida à reclamação. Por outro, quanto mais insurgência temos em relação aos precedentes vinculantes, mais reclamações serão cabíveis.
Essa multiplicação intensa das reclamações veio acompanhada de um segundo fenômeno que multiplicou, por sua vez, a capacidade de julgamento dos Tribunais Superiores: a expansão do modelo do plenário virtual.
O sistema de julgamentos virtuais já existia, mas sofreu intensa e abrupta expansão em 2020, quando o STF alterou seu regimento para permitir que qualquer ação, de qualquer natureza, fosse julgada no ambiente virtual. Assuntos inéditos, temas com repercussão geral reconhecida, ações de controle concentrado de constitucionalidade – os assuntos centrais da competência do Supremo foram deslocados ao ambiente virtual[10].
Há bastante espaço em outros fóruns para debater os efeitos negativos dessa mudança paradigmática, mas aqui é preciso focar em um efeito positivo, ao menos sob a perspectiva da histórica dificuldade do Supremo em lidar com o seu crescente acervo. O plenário virtual aumentou exponencialmente a capacidade de julgamento do tribunal, subvertendo o funil das sessões presenciais, que não ultrapassam as 80 por ano, e que permitem o julgamento de poucos processos por vez. O acervo do tribunal foi significativamente reduzido, mesmo com o crescente número de novas ações. Hoje, mais de 98% dos processos são julgados no ambiente virtual[11].
Para uma classe processual volumosa e repetitiva como as reclamações, essa combinação de números crescentes e um procedimento rápido e com alta capacidade de absorção levou a uma explosão não apenas de ações propostas, mas de julgamentos realizados: o Supremo 98% virtual julga mais de 7.000 processos por ano[12]. No caso das reclamações, a tramitação completa da ação muitas vezes não ultrapassa um ano. Com isso, nos últimos cinco anos, o número de reclamações propostas no tribunal cresceu quase 90%[13].
Nesse cenário, e tendo em vista as já destacadas divergências que surgem entre as turmas, o IAC pode abrir uma nova era para as reclamações. A uniformização de jurisprudência das turmas em assuntos chave e de natureza repetitiva, além de garantir a segurança jurídica, servirá de guia para partes interessadas e para outros juízes e tribunais.
A sinalização clara do plenário do Supremo sobre o seu posicionamento acerca dos temas poderá racionalizar, em alguma medida, a propositura de reclamações no tribunal. Racionalização essa que vem em ótima hora, considerando que a reclamação constitucional, ao que tudo indica, veio para ficar.
[1] Rcl 73295, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j; em 19/11/2025.
[2] Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, disponível em ttps://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF_integral.pdf, acesso em 18/12/2025.
[3] STF Corte Aberta: Acervo | Reclamações. Disponível em: https://transparencia.stf.jus.br/extensions/reclamacoes/reclamacoes.html, acesso em 11/12/2025.
[4] LACERDA, Luísa; GRYNBERG, Ciro. O STF entre o plenário e as Turmas: a aposta no IAC em reclamação. JOTA, 18/11/2025. Disponível em: https://www.jota.info/coberturas-especiais/jurisprudente/o-stf-entre-o-plenario-e-as-turmas-a-aposta-no-iac-em-reclamacao#_ftn6, acesso em 11/12/2025.
[5] Uma discussão completa sobre a evolução da jurisprudência do Supremo sobre o tema da pejotização pode ser vista no episódio 122 do Podcast Veirano, “Pejotização e Reforma Tributária”, com a participação de Luiza Lemos, Ana Beatriz Robalinho e Renata Joner. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hB1UvD8zddw, acesso em 18/12/2025.
[6] STF Notícias: Reclamação constitucional garante a preservação da competência do STF. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/reclamacao-constitucional-garante-a-preservacao-da-competencia-do-stf/. Acesso em 14/12/2025.
[7] Idem.
[8] STF Corte Aberta: Acervo | Reclamações. Disponível em: https://transparencia.stf.jus.br/extensions/reclamacoes/reclamacoes.html, acesso em 11/12/2025; Migalhas: STF: Reclamações superam HCs e ministros apontam atalho jurídico. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/438395/stf-reclamacoes-superam-hcs-e-ministros-apontam-atalho-juridico, acesso em 11/12/2025.
[9] JOTA: Barroso: reclamações crescem 35% e STF se tornou um ‘tribunal de precedentes vinculantes’. Disponível em: https://www.jota.info/stf/do-supremo/barroso-reclamacoes-crescem-35-e-stf-se-tornou-um-tribunal-de-precedentes-vinculantes, acesso em 11/12/2025.
[10] GODOY, Miguel; ARAÚJO, Eduardo Borges Espínola. A expansão da competência do Plenário Virtual do STF: colegialidade formal e déficit de deliberação. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 12, n. 1 (2022).
[11] STF Plenário Virtual. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/hotsites/plenariovirtual/, acesso em 14/12/2025; JOTA: A evolução do julgamento virtual no STF. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-evolucao-do-julgamento-virtual-no-stf, acesso em 14/12/2025.
[12] STF Plenário Virtual. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/hotsites/plenariovirtual/, acesso em 14/12/2025.
[13] STF Corte Aberta: Acervo | Reclamações. Disponível em: https://transparencia.stf.jus.br/extensions/reclamacoes/reclamacoes.html, acesso em 11/12/2025.

