Ao reconhecer a existência de uma emergência climática que demanda ações imediatas e eficazes, em decisão da Opinião Consultiva 32 (OC-32), de 3 de julho deste ano, os juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) estabeleceram um marco jurídico e político inédito na região, pois determina que os Estados devem adotar medidas urgentes e eficazes de proteção ambiental sob a perspectiva dos direitos humanos.
Os votos escritos pelos juízes que compõem a Corte, divulgados na última segunda-feira (29/9), detalham como se deu a construção do consenso histórico, alcançado após debates apertados e divisões resolvidas por quatro votos a três.
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A consulta foi solicitada por Chile e Colômbia em janeiro de 2023. Ao longo do processo, a Corte recebeu 260 contribuições escritas de mais de 600 atores — entre Estados, órgãos internacionais, especialistas, organizações da sociedade civil e defensores de direitos humanos — e realizou três audiências públicas em Barbados, Brasília e Manaus, entre abril e maio do ano passado.
Direitos da natureza e jus cogens
Os juízes Rodrigo Mudrovitsch (Brasil), Eduardo Ferrer Mac-Gregor (México) e Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai) lideraram o entendimento vencedor, sustentando que a proteção do meio ambiente deve ser considerada norma de jus cogens, ou seja, uma obrigação imperativa de direito internacional.
Eles destacaram que, desde a Conferência de Estocolmo de 1972, a comunidade internacional construiu o que é hoje conhecido como Direito Internacional Ambiental. O Acordo de Paris é citado por eles como “uma sólida evidência da formação de um consenso mínimo sobre a existência de obrigações internacionais relativas à proteção do clima”. Para os magistrados, o passo dado pela Corte representa um salto qualitativo digno de uma instância que se reivindica como tribunal de direitos humanos.
No voto conjunto, Mudrovitsch, Ferrer Mac-Gregor e Pérez Manrique identificaram condutas específicas que causam danos irreversíveis à estabilidade dos ecossistemas, tais como: desmatamento em larga escala de florestas; destruição generalizada ou danos à biodiversidade; contaminação persistente e em larga escala de recursos vitais; contaminação radioativa em larga escala; e alteração irreversível dos ciclos biogeoquímicos naturais, como os do carbono, nitrogênio ou fósforo. Todas, segundo eles, colocam em risco as condições mínimas de existência.
Além disso, os magistrados defenderam a equidade intergeracional, argumentando que as gerações presentes têm o dever de garantir às futuras um ambiente habitável, sob pena de perpetuar desigualdades e marginalizações antes mesmo de estas gerações existirem.
Outro ponto central foi o reconhecimento dos direitos da natureza, entendida como detentora de valor intrínseco e não apenas como recurso a serviço da humanidade. Para os juízes, a natureza tem direito a existir, manter seus ciclos ecológicos e regenerar-se. O voto defende ainda que os direitos da natureza são complementares aos humanos.
Dissidências e críticas
A decisão dividiu a Corte. A presidente, juíza Nancy Hernández López, votou de forma dissidente e parcialmente dissidente. Ela reconheceu a importância do parecer como marco histórico, mas rejeitou o reconhecimento da natureza como sujeito de direitos, a classificação da proteção ambiental como jus cogens e a criação de um direito humano autônomo a um clima saudável. Para ela, esses avanços não encontram respaldo jurídico suficiente no sistema interamericano nem na Convenção Americana de Direitos Humanos.
Segundo López, embora o compromisso ético com a proteção ambiental seja inegável, a Corte não deveria declarar obrigações que ainda não atendem aos critérios jurídicos necessários. Ela alertou para o risco de comprometer a consistência normativa do sistema ao avançar além de seu desenho original.
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Sobre a criação do direito autônomo a um clima sadio, ela disse que concorda plenamente “com a necessidade de os Estados adotarem medidas urgentes e diferenciadas para enfrentar a crise climática”, mas não acredita que o reconhecimento do direito a um clima saudável como um direito humano autônomo encontre “respaldo normativo suficiente no âmbito da Convenção Americana”.
A juíza chilena Patricia Pérez Goldberg também teceu críticas. Embora tenha reconhecido a urgência da crise climática e a relevância da OC-32 para o desenvolvimento progressivo do direito internacional, discordou de conclusões da maioria, argumentando que a Corte “excedeu os limites de sua competência” e “cometeu erros de análise jurídica”. Ela afirmou ainda que a Corte extrapolou sua competência e falhou em oferecer fundamentação robusta para o status de jus cogens. “Não considero juridicamente sustentável”, avaliou.
Para ela, decisões baseadas em declarações principiológicas, mas sem base jurídica sólida, podem enfraquecer a legitimidade da instituição e abrir margem para contestação. “O que se apresenta é uma declaração de princípio desprovida de justificativa robusta, que viola o padrão mínimo de fundamentação exigido. Assim, é particularmente problemático que uma decisão que se pretende educativa e enfatiza o direito à ciência e à tomada de decisão informada com base em evidências omita uma apresentação argumentativa séria dos fundamentos jurídicos e empíricos que sustentam tal designação”, considerou.
Perspectiva interseccional
A juíza argentina Verónica Gómez apresentou voto concorrente, alinhado à maioria, mas com ênfase distinta. Ela relacionou a OC-32 à Opinião Consultiva 31, sobre o direito ao cuidado, analisada quase simultaneamente. Gómez destacou que a crise climática afeta de forma desproporcional mulheres e meninas, que historicamente assumem tarefas de cuidado dependentes de água potável e saneamento básico.
Para a magistrada, a ausência de proibição explícita contra práticas que provoquem danos irreversíveis ao meio ambiente foi parcialmente suprida pela decisão da Corte ao invocar o jus cogens. Embora ressalte que esse conceito tenha sido tradicionalmente aplicado a crimes contra indivíduos, Gómez defende que a dimensão existencial da crise climática justifica sua aplicação ao meio ambiente.
Ela ressaltou ainda que os Estados devem reforçar a cooperação internacional e redefinir o multilateralismo, diante de um cenário em que a crise climática ameaça a sobrevivência de espécies inteiras e a habitabilidade do planeta.
Marco para a região
Apesar das dissidências, a maioria consolidou um precedente histórico. Pela primeira vez, a Corte IDH reconheceu explicitamente os direitos da natureza e afirmou que a proteção climática é obrigação inderrogável dos Estados. A decisão orienta os governos da região a adotar políticas robustas, que unam justiça climática, biodiversidade e defesa dos direitos humanos.
O resultado do julgamento, embora não unânime, é visto como um divisor de águas: um chamado para que a América Latina e o Caribe se posicionem na vanguarda da proteção ambiental e dos direitos humanos em um cenário global marcado pela emergência climática.