O Projeto de Decreto Legislativo 89/2023, que tenta sustar os efeitos de norma do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) responsável por instituir o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, parte de uma confusão conceitual e constitucional grave.
Ao alegar que a Resolução CNJ 492/23 usurpa competência do Supremo Tribunal Federal (STF) e extrapola o poder regulamentar, os proponentes do projeto ignoram que o conselho é, por força constitucional, órgão do Poder Judiciário e detentor de atribuições normativas próprias. Mais do que um erro jurídico, o PDL representa um retrocesso institucional.
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De acordo com a Constituição Federal, o Congresso Nacional pode, sim, sustar atos normativos do Poder Executivo que excedam o poder regulamentar ou ultrapassem os limites de uma delegação legislativa. Essa previsão, que fundamenta os projetos de decreto legislativo, está claramente delimitada no artigo 49, inciso V, da Constituição.
Mas não é o caso aqui. O CNJ não integra o Poder Executivo, e suas resoluções não derivam de delegação legislativa, mas de competência constitucional originária, especialmente quando se trata de orientar a atuação do Judiciário.
O STF já estabeleceu, em decisões reiteradas, que a sustação de atos normativos por parte do Legislativo é excepcional e só se justifica quando houver real abuso de poder regulamentar por parte do Executivo – o que não se aplica às atribuições do CNJ. Esse entendimento foi reforçado em decisões como a da ADC 46, em que se afirma que a sustação de normas não pode ocorrer com base apenas em divergências de mérito ou interpretações momentâneas do Legislativo.
Um dos pontos mais frágeis do PDL 89/23 é justamente tratar o CNJ como se fosse um órgão externo ao Judiciário. A Constituição é categórica ao incluí-lo entre os órgãos do Judiciário (artigo 92, I-A), com sede própria na capital federal e competência clara para zelar pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, inclusive por meio da edição de atos normativos.
Ao regulamentar a capacitação de magistradas e magistrados em temas como gênero, raça, etnia e direitos humanos, o CNJ atua dentro de sua competência constitucional, exercendo função normativa voltada à melhoria da prestação jurisdicional e à garantia dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
Essa atuação é amparada, por exemplo, no artigo 103-B, § 4º, da Constituição, que permite expressamente ao conselho expedir atos regulamentares no âmbito de sua atuação.
É importante distinguir dois conceitos que o PDL confunde: delegação legislativa e atribuição constitucional normativa. O primeiro se refere à hipótese excepcional em que o Legislativo autoriza o Executivo a legislar por meio de medidas provisórias, leis delegadas ou regulamentos autônomos.
Já a segunda, o caso do CNJ, diz respeito ao exercício legítimo de competências outorgadas diretamente pela Constituição, sem necessidade de delegação. E o STF tem reiterado essa distinção em decisões como a da ADC 12, que validou a atuação normativa do CNJ por estar fundamentada em princípios constitucionais como impessoalidade, eficiência e moralidade.
O PDL também ignora compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Desde a ratificação da Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, por meio do Decreto 10.932/22, o país assumiu o dever de adotar medidas concretas para combater essas práticas, inclusive no âmbito do Judiciário.
Essa convenção tem status de emenda constitucional, o que reforça a obrigação de capacitação institucional para enfrentar desigualdades estruturais, inclusive aquelas baseadas em gênero e raça.
A Resolução CNJ 492/23, portanto, está alinhada não só com a Constituição, mas também com normas internacionais e com o papel que se espera de uma justiça comprometida com os direitos fundamentais. Ao prever a capacitação da magistratura em temas que impactam diretamente a vida de milhões de brasileiras e brasileiros, a norma promove o aprimoramento da jurisdição, reforçando a confiança da população no sistema de justiça.
Tratar essa iniciativa como excesso regulamentar ou usurpação de competência é, no mínimo, uma leitura míope, quando não desonesta, das funções institucionais do CNJ. É inaceitável que, diante de compromissos constitucionais e internacionais tão claros, tentativas de deslegitimar políticas públicas inclusivas sejam travestidas de disputas formais de competência.
Por fim, vale lembrar que a categoria gênero não é invenção ideológica, mas conceito jurídico presente em instrumentos como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), ratificada pelo Brasil. A violência baseada em gênero é um fenômeno real e juridicamente reconhecido. Ignorá-la é compactuar com a omissão institucional.
O sistema constitucional brasileiro exige seriedade, compromisso e leitura qualificada. Não há espaço – nem no texto constitucional, nem no Estado democrático de Direito – para aventuras legislativas motivadas por ideologias excludentes ou por desinformação deliberada.