A República é instaurada no Brasil com o Decreto 1/1889, assinado pelo então chefe do governo provisório, marechal Deodoro da Fonseca, e desde então convivemos em uma república federativa e presidencialista, à exceção de um curto interregno de tempo entre 1961 e 1963.
Em 1961, com a renúncia do presidente Jânio Quadros e a subsequente crise política, instaura-se no Brasil o sistema parlamentarista, o qual passa a vigorar a partir da Emenda Constitucional 4/1961, esvaziando os poderes presidenciais do então presidente João Goulart. A emenda é submetida a referendo popular, e a população quando convocada vota de maneira esmagadora pela volta do sistema presidencialista: 76,98% contra 16,88% pela manutenção do parlamentarismo.
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Na Assembleia Nacional Constituinte, houve intensos debates sobre qual seria o sistema de governo mais adequado para a Nova República. O projeto de constituição apresentado pela Comissão de Sistematização previa um sistema de governo semipresidencialista, com um presidente eleito diretamente pelo voto popular exercendo a chefia de Estado (artigo 153)[1] e um primeiro-ministro, nomeado pelo presidente, dentre membros do Congresso Nacional exercendo a chefia de governo (artigo 179).
Nesse sentido, Virgílio Afonso da Silva afirma que a “história duradoura do presidencialismo talvez tenha sido mais fortemente ameaçada durante o processo de elaboração da Constituição de 1988”.[2]
Grosso modo, e de forma sintética, o cientista político Maurice Duverger define o sistema semipresidencialista a partir de alguns elementos básicos, dentre os quais: presidente exercendo a função de chefe de Estado eleito diretamente pelo voto popular e com poderes consideráveis, ou seja, não exerce papel meramente decorativo; chefia de governo exercida pelo primeiro-ministro e pelo conselho de ministros, com poderes executivos e de gerência da administração dependentes de aprovação pelo Legislativo.
Assim, no semipresidencialismo a gerência da administração e muitos dos poderes hoje exercidos pelo presidente passam a ser exercidos pelo primeiro-ministro, o qual será indicado a partir do resultado das eleições legislativas e das forças partidárias. Há uma relação de dependência entre Executivo e Legislativo.
Os sistemas de governo não são estáticos, possuem nuances, variedades, arranjos institucionais diversos; o semipresidencialismo adotado na França difere daquele em Portugal, por exemplo – tais diferenças se mostram a partir de especificidades históricas, políticas e culturais de cada país.
De mesmo modo, o presidencialismo brasileiro difere daquele vigente nos EUA, este marcado pelo bipartidarismo e pelo sistema majoritário-distrital, enquanto o nosso constitui-se em uma associação peculiar entre representação proporcional e um sistema partidário altamente fragmentado cujo presidente eleito de forma majoritária é obrigado a compor coalizões com forças heterogêneas e variadas para poder implementar sua agenda de governo.
Com as constantes crises políticas vivenciadas na Nova República não faltam vozes e dedos para apontar o presidencialismo como a causa primária de tais crises (apesar de tal sistema ter funcionado bem entre 1994 a 2014). No entanto, por vezes se ignora que não há sistema ideal – parlamentarismo, presidencialismo ou semipresidencialismo, todos possuem vicissitudes em sua implementação, vícios e virtudes, bônus e seus respectivos ônus.
Neste ano de 2025, inflado pelo novo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), é protocolada na Câmara a PEC 2/2025, de autoria do deputado Luiz Carlos Hauly (Podemos-PR) que institui o semipresidencialismo no país.
Pela análise da PEC, podemos citar algumas alterações substanciais em nosso sistema de governo: há transferência das atribuições do presidente hoje dispostas de forma não taxativa no artigo 84 da CF/88 e seus respectivos incisos para o primeiro-ministro, ao qual competiria:
- exercer a direção superior da Administração Federal;
- exercer o poder regulamentar;
- iniciativa para deflagrar o processo legislativo em matéria orçamentárias;
- indicar os ministros de Estado para a formação do governo, dentre outras.
Além disso, o primeiro-ministro seria nomeado pelo presidente, após consulta aos partidos políticos instituídos que compõem a maioria da Câmara.
Não creio que o sistema presidencialista seja cláusula imutável em nosso ordenamento, tampouco que o resultado do plebiscito de 1993 vincule o Congresso Nacional de maneira permanente ou que o Congresso e a sociedade não possam debater possíveis alterações em nosso sistema de governo.
No entanto, tais reformas devem estar necessariamente acompanhadas de um debate aberto, transparente e responsável, e não podem se dar de maneira casuística ou no calor de determinado contexto político.
Para além disso, penso que tal mudança só poderia se efetivar mediante consulta direta à população, seja na forma de plebiscito ou de referendo, aliado a amplas campanhas de divulgação e informação sobre os sistemas, o que a referida PEC não prevê.
Devemos lembrar que a população brasileira, quando instada a se manifestar sobre o sistema de governo de sua preferência, já optou pelo sistema presidencialista em dois momentos históricos diferentes, o primeiro em 1963, restaurando o presidencialismo, e o segundo em 1993, em plebiscito convocado por força do artigo 2°, ADCT, da CF/88[3].
Fato é que a dinâmica do nosso presidencialismo de coalizão se alterou nos últimos anos, principalmente com a instituição das emendas parlamentares impositivas, instituídas por emendas constitucionais de constitucionalidade duvidosa.
O Congresso se empoderou, tornou-se mais independente do Poder Executivo e passou a definir o destino de boa parte do Orçamento da União, transbordando de suas atribuições constitucionais, atuando como ordenador discricionário de despesas e usurpando funções da administração.
Ao que parece, nesta equação que envolve a PEC 2/2025, vemos de um lado um Executivo fragilizado, e do outro um Congresso empoderado, que já se assenhorando do Orçamento agora pretende se assenhorar do próprio governo.
AMATO, Lucas Fucci. A Constituição de 1988 e o debate sobre parlamentarismo e presidencialismo: modelos, trajetórias e alternativas institucionais. Revista de Informação Legislativa: RIL, v. 55, n. 219, p. 183-208, jul./set. 2018. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/55/219/ril_v55_n219_p183>. Acesso em 9 de fevereiro de 2025.
ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 5-34, 1988.
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, 5 out. 1988.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI 7.697/DF, rel. min. Flávio Dino
BRASIL, Câmara dos deputados. PEC 2/2025, Brasília,2025. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2483164>. acesso em 9 de fevereiro de 2025.
BRASIL, Tribunal Superior Eleitoral. Disponível em: <https://www.justicaeleitoral.jus.br/++theme++justica_eleitoral/pdfjs/web/viewer.html?file=https://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/referendo-de-1963/@@download/file/planilha-referendo.pdf . >Acesso em 07 de fevereiro de 2025.
DUVERGER, Maurice. A new political system model: semi-presidential government. European Journal of Political Research, Amsterdam, v. 8, n. 2, p. 165-187, June 1980.
Impulsionada por Hugo, PEC do Semipresidencialismo é protocolada na Câmara. CNN, Brasília, fevereiro de 2025. Disponível em: < https://www.cnnbrasil.com.br/politica/impulsionada-por-hugo-pec-do-semipresidencialismo-e-protocolada-na-camara/>. Acesso em 09 de fevereiro de 2025
SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Edusp,1ª ed. 2021.
[1] Cf. Projeto de constituição da Comissão de Sistematização, Capítulo II, Seções I, II e III e Capítulo III, seções I a IV. Disponível em: < https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/o-processo-constituinte/comissao-de-sistematizacao/copy_of_comissao-de-sistematizacao >. Acesso em 9 de fevereiro de 2025.
[2] SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Edusp,1ª ed. 2021, p. 482.
[3] Nos termos do referido artigo:
“Art. 2º. No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País. (Vide emenda Constitucional nº 2, de 1992)
§ 1º Será assegurada gratuidade na livre divulgação dessas formas e sistemas, através dos meios de comunicação de massa cessionários de serviço público.
§ 2º O Tribunal Superior Eleitoral, promulgada a Constituição, expedirá as normas regulamentadoras deste artigo.”. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 07 de fevereiro de 2025.