O futuro das relações de trabalho no Brasil foi o ponto central de dois debates jurídicos e sociais que pautaram julgamentos no Supremo Tribunal Federal (STF), no início deste mês de outubro. Um deles tratou sobre a existência ou não de vínculo de emprego entre motoristas de aplicativos e as plataformas digitais (Tema 1291) e o outro sobre a legalidade da contratação de serviços via pessoa jurídica, a conhecida “pejotização” (Tema 1389), ambos sob relatoria do Ministro Edson Fachin, que acaba de assumir a presidência do STF.
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No julgamento do Tema 1291, envolvendo o trabalho por aplicativos, a defesa dos trabalhadores argumentou que as plataformas exercem controle direto sobre a atividade por meio de algoritmos, definindo valores, aplicando penalidades e, na prática, submetendo os trabalhadores à avaliação constante dos consumidores, o que, aos seus olhos, configuraria vínculo de emprego em razão da configuração de subordinação algorítmica.
Entidades sindicais e as associações de magistrados e de procuradores sustentaram que as plataformas transferem os riscos do negócio e da atividade aos trabalhadores, os quais atuam sem proteção eficaz contra doenças e acidentes e sem cobertura previdenciária. Defenderam que a liberdade econômica não poderia se sobrepor ao valor social do trabalho e à dignidade humana, que a flexibilidade de jornada não elimina o vínculo empregatício e que alternativas como o contrato intermitente já ofereceriam flexibilidade dentro da própria CLT, inclusive com a possibilidade de recusar ofertas de trabalho. Outro argumento que teve destaque, foi o déficit previdenciário e a sobrecarga do sistema de Seguridade Social e do FGTS.
Em contrapartida, as plataformas e entidades empresariais defenderam seus modelos de negócio como plataformas de tecnologia intermediadoras, e não como empresas de transporte ou de entrega, ressaltando um regime de trabalho de autonomia. Argumentaram que os motoristas e entregadores buscam flexibilidade e que, muitas vezes, exercem outras atividades profissionais, inclusive como empregados de outras empresas, utilizando as plataformas apenas para complementar renda. Dessa forma, a imposição de vínculo celetista com as plataformas geraria impactos econômicos negativos, como aumento de preços e redução de postos de trabalho. Foi mencionada pesquisa conduzida pelo Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), que aponta que 64,1% dos trabalhadores prefeririam atuar como autônomos, 24,7% optariam pela formalização como microempreendedores individuais, e apenas 11,3% teriam manifestado preferência pelo regime da CLT.
As plataformas citaram, ainda, precedentes do STF que validaram outras formas de contratação civil e a liberdade de organização produtiva, a exemplo da terceirização de atividade-fim, dos contratos de parceria no setor de beleza e dos transportadores autônomos de carga. Pontuaram também o modelo de intermediação tecnológica, isento de metas ou horários fixos, e alertaram para um impacto econômico devastador que seria causado caso esse vínculo seja imposto, citando riscos de aumento de preços para o consumidor e de redução do PIB.
Como caminho intermediário, a Advocacia-Geral da União (AGU) e alguns ministros suscitaram a possibilidade de criação de um regime jurídico próprio, sem vínculo empregatício, mas que garanta direitos mínimos essenciais, como remuneração mínima, limitação de jornada, seguro de vida, contribuição previdenciária e representação sindical.
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Ao longo da sessão, alguns pronunciamentos dos Ministros chamaram atenção. O Ministro Alexandre de Moraes defendeu que regras contratuais e penalizações não configurariam subordinação por si só, pois existem em qualquer relação civil. Comparou o modelo dos motoristas de aplicativo ao dos taxistas, que seguem regras e são fiscalizados, mas não têm vínculo empregatício com o poder público.
O Ministro Barroso relembrou episódio recente em que dialogou com manifestantes trabalhadores de plataformas em evento na Universidade de São Paulo (USP) e destacou que a reivindicação da classe não seria pelo reconhecimento de vínculo, mas sim a garantia de jornada justa, remuneração mínima e seguro eficiente.
Já o Ministro Flávio Dino propôs uma reflexão sobre o poder sancionatório dos algoritmos, demonstrando preocupação com o nível de ingerência das plataformas sobre os trabalhadores e sobre a asseguração de proteção social.
O julgamento encontra-se suspenso e o STF, agora, se vê diante do desafio de equilibrar inovação tecnológica, geração de renda e proteção social, num cenário que exige respostas jurídicas à altura das transformações do mundo do trabalho.
Paralelamente, a audiência pública realizada no âmbito do Tema 1389 trouxe à tona um dos debates mais sensíveis e complexos sobre o futuro das relações de trabalho no Brasil: a pejotização. Estavam em discussão três pontos centrais: a competência da Justiça do Trabalho para julgar casos de fraude em contratos civis ou comerciais, a licitude da contratação de trabalhadores autônomos ou pessoas jurídicas à luz da ADPF 324 (marco jurídico, julgado pelo STF, que tem como tema central a terceirização de serviços); e o ônus da prova da alegação de fraude.
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A pluralidade de vozes presentes nesse julgamento revelou um cenário de tensões entre liberdade econômica, inovação produtiva e proteção social. A audiência evidenciou que a pejotização não é apenas uma questão contratual, mas um fenômeno com implicações profundas na estrutura previdenciária, na arrecadação fiscal e na dignidade do trabalho.
Segundo a argumentação do AGU, de representantes do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministério da Previdência Social (MPS), a pejotização irrestrita poderia comprometer a sustentabilidade do sistema de seguridade social, gerando déficits bilionários para a Previdência e o FGTS, além de transferir o ônus da proteção social para o Estado e o trabalhador. Segundo esses interlocutores, a pejotização rompe o modelo tripartite de financiamento, pois o modelo brasileiro de seguridade social, que engloba saúde, assistência social e previdência, é construído sobre três pilares de financiamento: empresas (paga contribuições sobre a folha de salários), empregados (contribui parte do salário para o INSS) e Estado (que financia impostos e outras receitas).
Entre os defensores do modelo, o argumento central foi a valorização da autonomia profissional e da liberdade contratual. Economistas convidados ressaltaram que a “pejotização” não deveria ser automaticamente associada à precarização e que seria necessário estabelecer critérios claros para distinguir relações civis legítimas de vínculos empregatícios disfarçados. Defenderam que a contratação por pessoas jurídicas poderia representar estratégia empresarial voltada à eficiência e à competitividade, permitindo que profissionais autônomos escolham métodos, horários e locais de trabalho, sem subordinação jurídica. Eles também propuseram uma reflexão sobre os desafios da tributação do trabalho diante das transformações econômicas e tecnológicas, como a inteligência artificial e o trabalho remoto. Concluíram que a realidade do mercado de trabalho é irreversível e exige soluções estruturais que garantam proteção aos trabalhadores e financiamento adequado às políticas públicas. Sob essa perspectiva, defenderam a necessidade de uma política tributária que leve em conta a diversidade das formas de trabalho e a crescente informalidade, destacando que o modelo atual de contribuições sociais sobre salário, receita e lucro pode ser aprimorado para ampliar a proteção social, inclusive para trabalhadores fora do regime CLT.
Como se vê, argumentos relevantes e não excludentes foram expostos na tribuna por ambos os lados, deixando o STF com a difícil missão de ponderá-los e harmonizá-los nas teses a serem estabelecidas.É importante notar que os dois temas tratados acima, embora igualmente relevantes e que envolvem questões do mercado de trabalho presentes na modernidade, são distintos e não se confundem. No que diz respeito à pejotização, não pode ser desconsiderado que a regulação das relações de trabalho de forma especial e segregada das relações civis tradicionais, foi resultado de avanço legislativo, já que até 1943 as relações de trabalho eram regidas pelo Código Civil de 1916. Nesse sentido, a normalização da contratação de todo e qualquer trabalhador como pessoa jurídica pode ser vista como um movimento que tensiona esse marco regulatório, levantando preocupações sobre a eventual descaracterização de direitos trabalhistas fundamentais. Por outro lado, a vilanização das plataformas digitais e a contratação por meio de pessoas jurídicas não parece ser o melhor caminho para a compatibilização do direito com a irrefutável realidade.
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A análise da licitude da pejotização exige particular cautela, especialmente à luz da ADPF 324. Isso porque a decisão proferida nesse caso, que se refere à terceirização, pressupõe uma relação jurídica triangular na qual o trabalhador é formalmente empregado (CLT) da empresa prestadora de serviços. Aplicar o mesmo entendimento indistintamente à pejotização poderia atrair interpretações jurídicas imprecisas, já que os fundamentos e os efeitos das duas práticas são distintos. Outros fundamentos jurídicos, inclusive constitucionais, incluindo a livre iniciativa, liberdade econômica e a livre autonomia da vontade de profissionais qualificados e instruídos, podem ser mais relevantes para a defesa do modelo de contratação.
Em relação às plataformas digitais, as exposições feitas na sessão de julgamento inclusive as intervenções dos próprios ministros, parecem sugerir um caminho intermediário de proteção social sem vínculo de emprego, isto é, a garantia de direitos fundamentais a esses trabalhadores, independentemente do seu tratamento como empregados, especialmente no que tange a remuneração mínima, jornada justa e seguridade social. No entanto, o STF não tem competência para fixar remuneração mínima aos motoristas ou entregadores de aplicativos, tampouco para estipular regras de jornada ou dispor sobre o custeio do sistema previdenciário e a elegibilidade desses profissionais à proteção do INSS.
A atuação do STF está limitada à análise da situação tal como posta atualmente, de modo a definir tese sobre a possibilidade do reconhecimento de vínculo de emprego entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e a empresa criadora e administradora da plataforma digital intermediadora.
Considerando o histórico de julgamentos do STF em matéria trabalhista, não haveria surpresa se a tese definida fosse pela inexistência de vínculo de emprego como premissa, autorizando o reconhecimento de vínculo em caso de comprovação de fraude ou demonstração dos elementos dos artigos 2º e 3º da CLT (que estabelecem critérios jurídicos para uma relação trabalhista ser considerada vínculo empregatício). A fixação de tese nesses moldes, no entanto, embora coerente com outros precedentes, não resolveria o problema da judicialização excessiva e da insegurança jurídica. Juridicamente, representaria apenas a manutenção do status quo.
Uma solução eficiente à questão só seria obtida por meio do alinhamento entre Judiciário e Legislativo, onde tramitam projetos de lei sobre a regulamentação do trabalho em plataformas digitais, abrangendo as categorias dos motoristas e dos entregadores – nenhum deles propondo o reconhecimento da relação de emprego.
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Nesse contexto, é importante pontuar que o movimento legislativo demorou a acontecer, mesmo diante da presença consolidada dessas plataformas no país há mais de uma década. Empresas como Uber, 99, iFood e Rappi operam com modelos de negócio e relações de trabalho que escapam às categorias tradicionais previstas na legislação trabalhista. A CLT, promulgada em 1943, foi concebida com cláusulas gerais e conceitos abertos, justamente para permitir alguma adaptação às transformações do mundo do trabalho. No entanto, apesar das reformas e atualizações ao longo das últimas décadas, a legislação não conseguiu acompanhar a velocidade das mudanças tecnológicas e sociais que moldaram o trabalho digital.
A defasagem entre a realidade e o arcabouço jurídico gerou um cenário de insegurança jurídica, com aumento da litigiosidade e interpretações divergentes nos tribunais sobre o vínculo entre trabalhadores e plataformas. A ausência de uma regulação clara também contribuiu para a insatisfação generalizada: motoristas e entregadores se queixam da precarização das condições de trabalho, enquanto as empresas enfrentam riscos jurídicos e incertezas regulatórias. Enquanto alguns buscam ampliar direitos e proteção social, outros priorizam a segurança jurídica e a flexibilidade contratual. O resultado é um impasse que exige uma resposta legislativa urgente e estruturada, que faz do atual momento um verdadeiro divisor de águas.
Atualmente, existem projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional a respeito da regulação do trabalho em plataformas, a exemplo do Projeto de Lei Complementar 12/2024 (“PLP 12/2024”), que busca regulamentar a atividade dos motoristas de transporte privado individual por aplicativo. A proposta cria a nova categoria de trabalhador, o “trabalhador autônomo por plataforma”, que não se enquadra na figura do empregado da CLT, nem do trabalhador autônomo tradicional, muito menos na pejotização, pois há vedação expressa de enquadramento desse trabalhador como MEI.
O debate segue intenso no Congresso, com forte mobilização de trabalhadores, empresas e entidades da sociedade civil. O desfecho desse processo legislativo, associado ao julgamento do STF, poderá redefinir as bases do trabalho no século XXI e influenciar profundamente o futuro das relações laborais no Brasil.
No âmbito internacional, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) está em processo de aprovação de uma Convenção Internacional sobre o trabalho em plataformas digitais, com o objetivo de garantir direitos e proteger os trabalhadores contra a precarização. A convenção foi debatida na 113ª Conferência Internacional do Trabalho em 2025 e uma versão final será votada em 2026, após a consulta aos países-membros.

 
			 
		
