Há mais de dois anos, o Direito do Trabalho virou assunto recorrente no Supremo Tribunal Federal (STF). Na mídia, as notícias sobre um aparente embate entre Justiça do Trabalho e STF se multiplicaram, sobretudo diante de decisões do Supremo em reclamações constitucionais que cassaram decisões da Justiça do Trabalho e validaram diferentes modalidades de contratação.
No cerne dessa controvérsia, está a interpretação ampliativa que o STF tem feito acerca do Tema 725 da repercussão geral, que trata da terceirização.
Conheça o JOTA PRO Trabalhista, solução corporativa que antecipa as movimentações trabalhistas no Judiciário, Legislativo e Executivo
Em muitas de suas decisões, o Supremo tem se fundado no precedente que autorizou a terceirização da atividade-fim (relação triangular em que uma empresa contratante contrata uma empresa prestadora de serviços para lhe prestar serviços diversos, executados por empregados desta última, conforme disciplinado na Lei 6.019/1974) para permitir, por tabela, a chamada pejotização (neologismo utilizado para designar a contratação de uma pessoa natural como pessoa jurídica a fim de transparecer uma relação civil-comercial, mascarando a relação de emprego). Há, assim, uma confusão entre essas duas práticas eminentemente distintas.[1]
Em meio a muitas críticas, em abril deste ano, o STF pareceu querer colocar ponto final nessa história: reconheceu a existência de repercussão geral no Tema 1389,[2] que trata da “competência e ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade”.
Em linhas gerais, o STF julgará os limites entre as contratações civis e comerciais lícitas e o que se convencionou chamar de pejotização, prática em que o trabalhador é contratado como se fosse uma pessoa jurídica (PJ) e não como empregado, com a finalidade de afastar a legislação trabalhista e tributação aplicável à contratação de empregados e, com isso, diminuir custos.
Historicamente, quando esses casos chegam à Justiça do Trabalho, os juízes analisam a situação concreta e as provas apresentadas pelas partes. Se os elementos caracterizadores do vínculo empregatício estiverem presentes (subordinação, não eventualidade, onerosidade e pessoalidade, conforme artigos 2º e 3º da CLT), a fraude à lei é reconhecida, e o vínculo de emprego é caracterizado.
Em outras palavras, “em caso de discordância entre o que ocorre na prática e o que emerge de documentos ou acordos, deve-se dar preferência ao primeiro, isto é, ao que sucede no terreno dos fatos”. [3]
Embora novo no âmbito da repercussão geral, o tema é velho conhecido: uso da forma jurídica – neste caso, da personalidade jurídica – para dificultar ou despistar a aplicação da legislação trabalhista. Em uma pesquisa histórica que fizemos sobre a o origem da figura do grupo econômico no Direito do Trabalho brasileiro, observamos que essa estratégia é antiga, assim como também é antiga a preocupação com a primazia da realidade sobre a forma.[4]
A noção de que a forma jurídica não é absoluta e que a verdade real deve prevalecer foi alçada a fundamento norteador do Direito do Trabalho por meio do princípio da primazia da realidade sobre a forma, posteriormente difundido em outros países da América Latina e adotado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).[5]
Mesmo antes da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a jurisprudência e a legislação trabalhista já estavam imbuídas do princípio, ainda que não o mencionassem de forma expressa, sobretudo para evitar o uso de PJs para evadir a lei trabalhista. Nossa investigação revela o pioneirismo da legislação brasileira ao reconhecer a figura do grupo econômico e impor a responsabilidade solidária da sociedade controladora em matéria trabalhista,[6] regime que foi posteriormente adotado por outros países.
Originalmente, o grupo econômico foi disciplinado pela Lei 435/1937.[7] Mesmo antes da edição da lei, em 1937, decisão do Conselho Nacional do Trabalho (CNT) afastou o formalismo e reconheceu que o fato de o contrato de trabalho ter sido firmado ao longo do tempo por duas pessoas jurídicas distintas (Companhia Brasileira de Energia Elétrica e Companhia Linha Circular de Carris da Bahia) não poderia ser utilizado para frustrar o direito do trabalhador à estabilidade, visto que as empresas pertenciam a um mesmo grupo econômico.[8] Na decisão, o CNT enfatizou que, do contrário, a utilização de diversas pessoas jurídicas implicaria o esvaziamento das garantias legais do trabalhador.
Receba gratuitamente no seu email as principais notícias sobre o Direito do Trabalho
A primazia da realidade foi incorporada em diferentes dispositivos da legislação trabalhista que subsistem até os dias de hoje – a exemplo do artigo 9º da CLT, segundo o qual “serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação” – e em passagens diversas da jurisprudência trabalhista, tal como a Súmula 338 do TST, que presume inválidos como meios de prova os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída uniformes (ou cartões de ponto britânico, como ficaram conhecidos).
Em âmbito internacional, por sua vez, a Recomendação 198 da OIT determina que os Estados-membros, como é o caso do Brasil, devem “combater relações de emprego disfarçadas no contexto de, por exemplo, outras relações que podem incluir o uso de outras formas de acordos contratuais que ocultam o verdadeiro estatuto jurídico”.
Nossa pesquisa revela o pioneirismo do Brasil ao impedir que as PJs pudessem frustrar o Direito Trabalhista já em 1937 mediante a imposição de responsabilidade solidária no contexto dos grupos econômicos. Em 2024, o STF recorreu justamente ao conceito de grupo econômico – citando a CLT – para bloquear os bens da Starlink, empresa controlada por Elon Musk, a fim de forçar o cumprimento das suas decisões pelo X (antigo Twitter), pessoa jurídica distinta também controlada por Musk.[9]
Seria um contrassenso se o mesmo STF – que ousa desconsiderar a personalidade jurídica da grande empresa Starlink, que conta inclusive com outros sócios e objeto social distinto, para fazer cumprir as suas decisões – passasse a santificar as singelas PJs de trabalhadores individuais para evitar a incidência da legislação trabalhista e subverter a tradição jurídica brasileira sem intervenção do Congresso Nacional.
Em termos práticos, o que está em jogo, aliás, não é apenas a efetividade dos direitos previstos por lei, mas também o equilíbrio das contas públicas e a sustentabilidade da Previdência Social.[10]
Dessa maneira, ao julgar a pejotização no Tema 1389, o STF invariavelmente decidirá sobre a permanência de um pilar historicamente fundante do Direito do Trabalho – o princípio da primazia da realidade sobre a forma – e sobre os efeitos da forma jurídica como modo de arbitragem regulatória. O Brasil é pioneiro ao combater a utilização de PJs para subverter os direitos dos trabalhadores. Portugal, por exemplo, apenas adotou a solução brasileira sobre grupos econômicos em matéria trabalhista mais de 70 anos depois.
Seria um equívoco fazer tábula rasa da tradição brasileira que privilegia substância sobre forma em matéria trabalhista e das recomendações internacionais sobre a matéria. Se as leis trabalhistas brasileiras são ou não desejáveis, cabe ao Congresso Nacional decidir. Mudanças estruturais como essa que podemos estar prestes a presenciar não podem ser determinadas apenas pelo Supremo Tribunal Federal. Para além de estudos sobre seus impactos, transformações desse porte necessitam de diálogo democrático entre os variados poderes e com os diferentes setores da sociedade.
[1] PASQUALETO, Olívia de Quintana Figueiredo; BARBOSA, Ana Laura Pereira. Direito do trabalho, precedentes e autoridades do STF: um estudo de caso a partir do Tema 725. REI-Revista Estudos Institucionais, v. 10, n. 2, p. 375-402, 2024.
[2] A repercussão geral foi reconhecida em 12 de abril de 2025 e, em 14 de abril de 2025, uma decisão do Ministro Gilmar Mendes determinou a suspensão nacional da tramitação de todos os processos que versam sobre o assunto até que haja julgamento definitivo da repercussão geral.
[3] RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de direito do trabalho. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2000, p. 144.
[4] Cf. PARGENDLER, Mariana; PASQUALETO, Olivia. Overcoming Corporate Separateness: The Origins and Evolution of Liability in Group Law and Beyond (Working Paper, 2025).
[5] GAMONAL C, Sergio; ROSADO MARZÁN, César F. Primacy of Reality. In: GAMONAL C, Sergio; ROSADO MARZÁN, César F. Principled labor law: US labor law through a Latin American method. New York: Oxford University Press, 2019.
[6] Vale mencionar que o grupo econômico está envolvido em outro assunto pendente de julgamento pelo STF na repercussão geral. Trata-se do Tema 1232, em que se discute a “possibilidade de inclusão no polo passivo da lide, na fase de execução trabalhista, de empresa integrante de grupo econômico que não participou do processo de conhecimento”.
[7] In verbis: Art. 1º Sempre que uma ou mais emprêsas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, contrôle ou administração de outra, constituindo grupo industrial ou comercial, para efeitos legislação trabalhista serão solidariamente responsáveis a emprêsa principal e cada uma das subordinadas. Parágrafo único. Essa solidariedade não se dará entre as emprêsas subordinadas, nem diretamente, nem por intermédio da emprêsa principal, a não ser para o fim único de se considerarem todas elas como um mesmo empregador (lei n. 62, de 1935).
[8] BRASIL. Conselho Nacional do Trabalho. Processo nº 4.886-303. Relator: Juiz Manoel da Silva, decidido em 2 de abril de 1937, com publicação no Diário Oficial em 14 de junho de 1937, p. 12736.
[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição nº 12.404. Relator: Ministro Alexandre de Moraes, decidido em 24 de agosto de 2024.
[10] MARCONI, Nelson; BRANCHER, Marco Capraro. Nota técnica sobre os impactos da pejotização sobre a arrecadação tributária. São Paulo: FGV, 2024. Disponível em: https://eaesp.fgv.br/producao-intelectual/nota-tecnica-sobre-impactos-pejotizacao-sobre-arrecadacao-tributaria