Com a consolidação das mídias sociais ao redor do mundo, o ambiente digital passou a se tornar campo fértil para a prática de crimes cometidos em contexto de violência contra a mulher. Não por acaso, o legislador empregou pela primeira – e única vez até este momento – o uso da expressão “inteligência artificial” justamente em matéria de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, criando uma causa de aumento de pena específica ao crime de violência psicológica (art. 147-B do CP)[1].
Na mesma perspectiva, é possível encontrar em inúmeras literaturas especializadas no direito comparado o estudo da “violência digital contra as mulheres” ou “ciberviolência de gênero” como uma forma autônoma de agressão às mulheres e meninas[2].
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Se por um lado é possível constatar o indesejável fenômeno da violência digital contra mulheres e meninas ao redor do mundo, por outro, as ferramentas tecnológicas também avançam na perspectiva de auxiliar às vítimas e o próprio sistema de justiça na produção probatória a fim de auxiliar na caracterização da autoria delitiva e na materialidade da infração penal.
O texto desta semana na coluna “Direito dos Grupos Vulneráveis” possui uma proposta delimitada: analisar algumas das inúmeras perspectivas probatórias em matéria de enfrentamento à violência contra as mulheres – incluindo aquelas envolvendo o uso de tecnologia – à luz da jurisprudência (ainda em construção) do Superior Tribunal de Justiça.
Prints de WhatsApp apresentados em juízo pela vítima
Com a popularização do aplicativo WhatsApp no Brasil, a utilização de prints de mensagens como elemento de prova é antigo na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. As turmas criminais da Corte possuem um significativo emaranhado de decisões a respeito do assunto, porém, recentemente, o tema foi analisado pelo Tribunal na perspectiva de aferição de quebra da cadeia de custódia em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. No CPPP, o tema é regulamentado a partir dos artigos 158-A e seguintes.
No dia 21 de outubro de 2025, chegou ao Superior Tribunal de Justiça um caso envolvendo a prática de um crime de ameaça cometido em contexto de violência doméstica e familiar, cujo principal elemento de prova obtido pela acusação consistia em prints de WhatsApp obtidos pela vítima e apresentados em juízo. Na oportunidade, a defesa invocou inúmeros precedentes do próprio STJ, em casos nos quais a polícia não haveria utilizado da metodologia técnica adequada (v.g., extração de dados de celulares em investigação de tráfico de drogas) para sustentar a nulidade das capturas de tela apresentadas no processo por particulares.
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Ao examinar a questão, a Corte realizou um distinguishing entre os precedentes invocados pela defesa (os quais de fato exigem uma metodologia adequada por parte da polícia) e a situação de um particular, neste caso, uma mulher vítima de violência doméstica que apresentou prints de WhatsApp em juízo. Ao final, o Tribunal cristalizou a seguinte tese: “Prints de mensagens de WhatsApp obtidos por particular, confirmados em juízo e sem indícios de manipulação, não configuram violação ao art. 158-A do Código de Processo Penal”[3].
A distinção realizada pelo Tribunal ao não reconhecer a quebra da cadeia de custódia em tais casos se alicerça em três pressupostos: a) a prova ter sido apresentada pela vítima, e não obtida pelo Estado (v.g., através de mandado de busca e apreensão etc); b) a corroboração do conteúdo em juízo por outros elementos probatórios e; c) a inexistência de indícios de manipulação.
A partir das premissas enumeradas, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça se mostra acertado na opinião deste articulista. Isso porque, para além dos argumentos já mencionados, os casos envolvendo infrações penais consumadas em contexto de violência doméstica e familiar, porém ocorridos no ambiente virtual ostentam, geralmente, baixa complexidade (v.g., ameaça por WhatsApp, descumprimento de medida protetiva de urgência por contato realizado via Instagram etc).
Logo, parece-nos que o recentíssimo entendimento exarado pela Corte levou também em consideração o atual estado de coisas do enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher no ambiente digital.
Registros de fotográficos e audiovisuais da vítima por integrantes da polícia
A realização de registros fotográficos e audiovisuais pela autoridade policial ou pelos próprios policiais militares responsáveis pelo atendimento da ocorrência também vem sendo admitida como prova válida para fins de aferição da materialidade de crimes cometidos em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, inclusive em casos de lesões corporais.
Diante da adoção pelo Código de Processo Penal brasileiro do sistema do livre convencimento motivado (ou da persuasão racional), até mesmo em casos de lesões corporais cometidos em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, o Superior Tribunal de Justiça vem admitindo a aferição da materialidade do tipo mencionado a parir de variados meios de prova, não caracterizando a ausência do exame de corpo de delito um obstáculo intransponível[4]. Nessa linha de raciocínio, a Corte é categórica ao afirmar que: “A materialidade delitiva em casos de violência doméstica pode ser comprovada por meios diversos do exame de corpo de delito[5]”.
Neste cenário, uma prática específica vem ganhando corpo em território nacional: a realização de um “auto de constatação provisório de lesões corporais” pela autoridade policial responsável pela colheita do depoimento da ofendida, ou pelos policiais militares que atenderam a ocorrência. Em síntese, após a colheita do consentimento livre e informado da vítima, são realizados registros fotográficos e audiovisuais das lesões corporais sofridas pela vítima, tudo isso para fins de comprovação da materialidade do delito.
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A situação já foi objetivo de análise pelo Superior Tribunal de Justiça em ao menos duas oportunidades. Em 2023, a Corte reconheceu a prática como válida para fins de aferição da autoria e materialidade do crime previsto no art. 129, §9º, do Código Penal. Nas exatas palavras registradas pelo STJ no julgamento: “as fotos tiradas da ofendida na Delegacia de Polícia, logo após os fatos, que revelam lesões aparentes e condizentes com o soco desferido em sua face[6]”.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça foi instado ao analisar a temática novamente, oportunidade na qual fixou a seguinte tese: “A condenação por violência doméstica pode ser mantida com base em depoimentos extrajudiciais e fotografias, na ausência de exame de corpo de delito, desde que corroborados por outros elementos probatórios[7]”.
Em termos processuais, é importante destacar ao leitor que tais registros fotográficos e/ou audiovisuais não serão caracterizados como elementos de informação, mas, como provas não repetíveis, permitindo, deste modo, a prolação de sentença condenatória em detrimento do homem autor das lesões corporais à luz do art. 155 do Código de Processo Penal.
Portanto, a realização dos registros fotográficos e/ou audiovisuais, e a consequente elaboração do “auto de constatação provisório de lesões corporais” vai ao encontro do próprio entendimento do Superior Tribunal de Justiça que, ao tratar do sistema de provas no processo penal brasileiro reconhece que: “Não vigora no campo penal um sistema rígido de taxatividade dos meios de prova, sendo admitida a produção de provas não disciplinadas em lei, desde que obedecidas determinadas restrições[8]”.
Embora não possuam o condão de substituir a realização do laudo de exame de lesões corporais (art. 158 do CPP), a realização dos registros fotográficos e audiovisuais das lesões corporais da vítima se apresenta como uma iniciativa promissora em termos práticos, sobretudo diante dos inúmeros percalços vivenciados por mulheres vítimas de violência doméstica e familiar para a realização do laudo após o registro do boletim de ocorrência (v.g., agressor esperando na saída da delegacia de polícia, inexistência de condições financeiras para se deslocar até o local indicado para a realização do exame, necessidade de voltar ao trabalho etc).
Logo, novamente nos parece acertada a jurisprudência do Tribunal da Cidadania, visto que a Corte materializa a um só tempo, a incorporação de novas perspectivas probatórias no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, sem se descurar dos direitos e garantias fundamentais do acusado.
A possibilidade em comento parece também ir ao encontro da intenção do legislador (mens legislatoris) à época, visto que, ao promulgar a Lei Maria da Penha no longínquo ano de 2006 (dois mil e seis), o poder legiferante já objetivava uma perspectiva probatória ampla no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo possível chegar a tal conclusão a partir do texto contido no art. 12, §3º da LMP, o qual afirma que: “Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde”.
Provas digitais em casos de violência doméstica e familiar
Conforme narrado ao longo deste texto, o Superior Tribunal de Justiça vem sendo instado a se manifestar – cada vez mais – sobre a validade ou não de determinadas provas produzidas a partir da utilização de meios tecnológicos, de modo que a jurisprudência do Tribunal ainda encontra-se em estágio de desenvolvimento e consolidação, sobretudo em relação aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Ameaças, descumprimentos de medidas protetivas de urgência, crimes contra a honra e até crimes contra a dignidade sexual possuem, por vezes, e em razão da ebulição da era das plataformas digitais, autoria e materialidade aferidas a partir de provas produzidas no ambiente virtual.
Aparentemente valendo-se de algumas das premissas já mencionadas no tópico número um deste artigo, recentemente o Superior Tribunal de Justiça se deparou com um caso envolvendo a prática do crime de ameaça em ambiente virtual e cometido em contexto de violência doméstica e familiar. Na oportunidade, afirmou a Corte que: “A cadeia de custódia das provas digitais deve ser observada, mas a ausência de exame pericial ou autenticação não invalida automaticamente a prova[9]”.
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Segundo o STJ, portanto, a ausência de perícia ou autenticação não torna a prova produzida automaticamente inválida, sendo possível a sua corroboração por outros meios de prova (v.g., palavra da vítima, provas testemunhais, documentos acostados aos autos etc). Alias, o próprio Tribunal já havia afirmado este entendimento em outra oportunidade, cristalizando a seguinte tese: “A ausência de perícia técnica em prova digital não invalida a condenação quando corroborada por outros elementos probatórios[10]”.
Na mesma linha de raciocínio, e também em um caso envolvendo a prática do crime previsto no art. 147, §1º, do CP, a Corte fixou entendimento no sentido de que “A disponibilização da prova por link externo, sem indícios concretos de adulteração, não configura quebra da cadeia de custódia, conforme entendimento do Tribunal de origem[11]”.
Portanto, é possível concluir que, ao menos em precedentes envolvendo o enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, o Superior Tribunal de Justiça vem reafirmando em sua jurisprudência dois entendimentos de suma relevância: a) a ausência de perícia ou autenticação não se caracterizam per si como situações aptas a invalidar automaticamente as provas digitais produzidas, sendo possível, inclusive, a condenação de homens autores de violência doméstica com base em tais provas (desde que corroboradas por outros elementos probatórios) e; b) eventuais alegações de adulteração desprovidas da apresentação de quaisquer indícios de fraude não possuem o condão de invalidar automaticamente as provas digitais produzidas.
Espero que tenham gostado do texto.
Até a próxima!
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[1] Para um maior aprofundamento sobre o tema: HEEMANN, Thimotie Aragon. CUNHA, Rogério Sanches. DE ÁVILA, Thiago Pierobom e FERNANDES, Valéria Scarance Diez. ei 15.123/2025 – Violência psicológica contra a mulher e a humilhação digital: nova causa de aumento do crime do art. 147-B do CP. Disponível em: Lei 15.123/2025 – Violência psicológica contra a mulher e a humilhação digital: nova causa de aumento do crime do art. 147-B do CP – Meu site jurídico Acesso em 31 de outubro de 2025
[2] ZARDA, María Florencia. Violência de gênero digital. 2ª ed Buenos Aires, Hammurabi, 2024
[3] STJ, AgRg no AREsp n. 2.967.267/SC, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 21/10/2025, DJEN de 27/10/2025
[4] STJ, REsp n. 2.190.086/AL, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 3/9/2025
[5] STJ, AgRg no AREsp n. 2.738.274/SE, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 5/8/2025
[6] STJ, AgRg no HC n. 781.943/PR, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 14/2/2023
[7] STJ, AgRg no AREsp n. 2.866.873/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 5/8/2025
[8] STJ, HC n. 740.431/DF, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 13/9/2022
[9] STJ, AgRg no AREsp n. 2.601.791/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 20/8/2025
[10] STJ, AgRg no AREsp n. 2.695.343/MG, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 10/6/2025
[11] STJ, AgRg no RHC n. 215.459/MS, relator Ministro Otávio de Almeida Toledo (Desembargador Convocado do TJSP), Sexta Turma, julgado em 24/6/2025

