O Projeto de Lei 1.473/2025, de autoria do senador Fabiano Contarato (PT-ES), acaba de ser aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) sob a relatoria de Flávio Bolsonaro (PL-RJ). A proposta aguarda o possível recurso para que o plenário do Senado aprecie, pois a decisão foi terminativa em comissão. Logo após, o projeto seguirá para a Casa revisora (no caso, a Câmara dos Deputados) para nova tramitação.
O texto altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para aumentar de três para até cinco anos o tempo máximo de internação de adolescentes que pratiquem atos infracionais.
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Sob o argumento de “combater a impunidade” e “garantir segurança à sociedade”, o projeto ignora dados empíricos, estudos criminológicos e princípios constitucionais fundamentais. Na prática, ele busca um retorno ao punitivismo juvenil e rompe com o caráter pedagógico e ressocializador do sistema socioeducativo, previsto expressamente no ECA e na Constituição Federal.
A proposta surge em um contexto de pânico moral, alimentado por episódios de violência amplamente divulgados pela mídia. Contudo, ao invés de enfrentar as causas estruturais da criminalidade juvenil, o projeto recorre ao encarceramento como solução simbólica, vendendo uma resposta rápida e emocional a uma questão que é, por natureza, complexa e multifatorial.
Nesse sentido, sob a ótica do garantismo penal, essa retórica esconde um perigoso retrocesso: o de potencializar a conversão de adolescentes em inimigos do Estado, negando-lhes a condição de sujeitos de direitos reconhecida pela Constituição e pelo ECA.
Segundo Alexis de Couto Brito (FERRÉ OLIVÉ et al., 2021, p. 24), “ao Estado não é permitido criminalizar tudo, só poderá proibir quando isso for necessário para a segurança e a liberdade das pessoas”, o que evidencia a real intenção do PL em discussão.
Quem são os adolescentes atingidos pelo projeto?
Os dados trazidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2016) mostram um perfil muito distinto daquele retratado nos discursos políticos que sustentam o PL 1.473/2025.
De acordo com levantamento do Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei (CNACL), em 2016 o número de adolescentes cumprindo medidas socioeducativas dobrou, passando de 96 mil para 192 mil em um único ano, realidade esta que permanece em crescimento.
Como observa Semer (2019, p. 10), o grande encarceramento brasileiro deve ser compreendido como resultado da conjugação entre o populismo penal contemporâneo e o legado autoritário das permanências históricas, sobretudo a longevidade da escravidão, reproduzindo seletividade e exclusão no sistema penal. Tal entendimento se aplica também à lógica penal que está sendo imposta aos adolescentes que cometem ato infracional.
Nesse contexto, o tráfico de drogas aparece como ato infracional mais recorrente, com quase 60 mil guias ativas nas Varas da Infância e Juventude. Em seguida, vêm o roubo e o furto, condutas diretamente relacionadas à vulnerabilidade social e econômica, e não à periculosidade intrínseca desses jovens.
Além disso, cerca de 90% dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa são do sexo masculino, e a liberdade assistida continua sendo a medida mais aplicada, com mais de 83 mil adolescentes sob acompanhamento multidisciplinar. Esses dados reforçam que o ECA vem funcionando como política de inclusão, não de punição, e que o aumento do tempo de internação não atinge os “grandes criminosos e inimigos da sociedade”, mas sim jovens pobres, periféricos e negros, historicamente alvos de seletividade penal.
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Pitombo (2021, p. 45) destaca que “Atualmente, não se usam apenas meios para ferir a integridade física voltados a alcançar o mencionado objetivo ilegal de autoincriminação. Hoje, combinam-se a angústia, o estresse e a humilhação, como instrumentos de pressão psicológica capazes de reduzir a capacidade volitiva do indivíduo, obrigando-o a fazer o que não quer e a lei não lhe obriga (art. 5º, II, da CR).” Fato esse que se repete e se potencializa nos casos de atos infracionais cometidos por adolescentes.
A inversão da lógica da intervenção penal
O PL 1.473/2025 inverte a lógica trazida pelo artigo 227 da Constituição Federal, que impõe ao Estado o dever de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à educação e à dignidade.
O encarceramento prolongado, em vez de proteger, reproduz e aprofunda a exclusão social, ao interromper processos educativos, cortar redes de proteção e expor adolescentes a ambientes que favorecem a violência e a estigmatização. Relatórios do UNICEF sobre a situação dos adolescentes no Brasil destacam a concentração de jovens em medidas privativas de liberdade e apontam que as práticas punitivas, sem políticas sociais integradas, tendem a reproduzir ciclos de vulnerabilidade.
Nesse sentido, o presente projeto de lei desrespeita o princípio da ultima ratio, nas palavras de Muñoz Conde (Introducción al derecho penal, p. 71-72): “nem todas as ações que atacam bens jurídicos são proibidas pelo Direito Penal, nem tampouco todos os bens jurídicos são protegidos por ele. O Direito penal, repito mais uma vez, se limita somente a castigar as ações mais graves contra os bens jurídicos mais importantes…”.
A permanência da cultura carcerária travestida de socioeducação
A atual situação se reveste de uma nova roupagem, a mesma advinda da racionalidade de exclusão herdada do período autoritário brasileiro. Nesse sentido, a lógica repressiva apenas se reacomoda em discursos de segurança, moralidade e eficiência, mas continua a servir ao mesmo propósito: controlar corpos pobres e racializados.
Essa constatação se confirma historicamente, como mostra a reportagem da Revista Adusp, a antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), antecessora das atuais unidades da Fundação Casa, nunca conseguiu romper com a cultura carcerária que herdou da ditadura militar. Mesmo após a promulgação do ECA, persistiram a superlotação, a tortura e a ausência de projeto pedagógico, reproduzindo um ciclo de violência institucional.
A Febem, criada em 1976 e inspirada na doutrina de segurança nacional, foi construída sobre uma lógica de contenção e repressão e não de proteção. Essa “herança autoritária”, resiste até hoje: as medidas socioeducativas, embora legitimadas pelo discurso da ressocialização, reproduzem as mesmas práticas punitivas e os mesmos espaços de confinamento, apenas com nomes diferentes.
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Assim, o PL 1.473/2025 não inaugura um novo paradigma, mas reitera a permanência dessa cultura carcerária, deslocando para o plano legislativo o mesmo modelo de exclusão que fracassou institucionalmente nas últimas décadas.
Dessa forma, enquanto o Estado insiste em expandir ainda mais o poder de punir, o projeto de reconstrução social e educativa da juventude pobre segue não só inacabado, mas completamente ignorado.
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Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990.
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 1.473, de 2025. Altera o Estatuto da Criança e do Adolescente para dispor sobre medidas socioeducativas. Brasília, DF: Senado Federal, 2025. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/167920. Acesso em: 25 out. 2025.
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SEMER, Marcelo. Sentenciando tráfico: pânico moral e estado de negação formatando o papel dos juízes no grande encarceramento. 2019. 351 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. DOI: 10.11606/T.2.2019.tde-21082020-032044. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2136/tde-21082020-032044/ptbr.php. Acesso em: 25 out. 2025.
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