Toda política pública passa por um ciclo decisório composto por etapas bem identificadas: diagnóstico do problema, formulação de alternativas, decisão, implementação, monitoramento e avaliação. Nesse ciclo, o planejamento da contratação pública deve exercer uma função estratégica, já que é por meio dela que o Estado materializa políticas e entrega bens e serviços à sociedade.
Apesar de sua centralidade, o planejamento público ainda é um dos pontos mais fragilizados da atuação estatal. Em muitos contextos, ele é tratado como uma formalidade documental, dissociado da realidade orçamentária, da escuta qualificada da sociedade e da lógica sistêmica das políticas públicas.
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É nesse cenário que a fase preparatória da licitação, disciplinada pela Lei 14.133/2021, adquire importância ainda maior. Ela representa o ponto de articulação entre o planejamento da política pública e sua execução concreta. Os documentos produzidos nesse momento — como o Documento de Formalização da Demanda (DFD), o Estudo Técnico Preliminar (ETP) e o Termo de Referência (TR) — não são meras formalidades. Eles expressam o real planejamento da necessidade da administração e definem os contornos da futura contratação pública.
Sua elaboração exige conhecimento técnico, compreensão da realidade administrativa e vinculação às finalidades públicas. Sem isso, o risco é claro: a administração pode ser induzida a erro, contratar mal e frustrar os resultados esperados da política pública. É justamente nesse ponto que se impõe a reflexão: o uso crescente de ferramentas de inteligência artificial nessa etapa representa avanço com discernimento ou delegação sem controle?
Imagine uma ferramenta de IA treinada com milhares de documentos públicos. Ela sugere, em poucos segundos, um DFD, elabora um ETP robusto e redige um TR completo, citando indicadores, bases de dados e cláusulas frequentemente aceitas por órgãos de controle. Parece ideal. Mas a dúvida é inevitável: essa automação representa eficiência real ou apenas a repetição de padrões anteriores, sem verificação crítica da sua adequação ao caso concreto?
O uso de IA na elaboração dos artefatos técnicos pode oferecer, sim, benefícios importantes: otimização de tempo, padronização de estrutura, uniformização de linguagem técnica, além de aproveitamento de boas práticas históricas. No entanto, quando não é usado com critérios claros e com controle humano efetivo, o recurso tecnológico pode conduzir a erros silenciosos, soluções inadequadas ou, pior, decisões descoladas das reais necessidades do órgão público ou sem aderência mercadológica.
A automatização da fase preparatória da contratação pública, embora possa propiciar ganhos promissores, impõe riscos que não devem ser ignorados. Um dos mais potenciais é a reprodução acrítica de modelos anteriores com falhas estruturais, já que sistemas treinados em dados históricos tendem a replicar padrões, ainda que não reflitam boas práticas ou atendam às peculiaridades do caso concreto.
Outro ponto crítico é o desalinhamento com a realidade administrativa presente. Cada contratação exige um estudo diagnóstico específico e atualizado. Ao propor soluções padronizadas, a IA pode ignorar variáveis essenciais — como contexto local, restrições operacionais e prioridades institucionais —, gerando artefatos que não correspondem à real necessidade da administração.
Também é preciso atentar para a falsa sensação de segurança jurídica, uma vez que a IA é capaz de produzir documentos bem estruturados, redigidos com linguagem técnica, transmitindo, assim, uma aparência de correção. No entanto, se estiverem desprovidos de motivação adequada, contextualização fática e justificativa real e convincente, não resistirão à análise dos órgãos de controle.
Por fim, há o risco de diluição da responsabilidade funcional, pois quando o conteúdo da contratação é definido por sistemas automatizados, o papel do agente público pode ser esvaziado. A decisão deixa de ser construída com base no juízo técnico de quem conhece a demanda e passa a ser assumida, silenciosamente, por um modelo algorítmico que não responde pelos efeitos de suas sugestões.
Diante desses riscos, é fundamental que a inteligência artificial seja utilizada como ferramenta de apoio, jamais como substituta do discernimento e da capacidade humana. Para isso, algumas salvaguardas são indispensáveis. A primeira delas é a revisão humana obrigatória: todo artefato gerado por IA deve ser validado por servidor qualificado, com motivação clara quanto à sua adequação ao caso concreto.
A capacitação dos usuários não é menos importante. Todos os agentes públicos que operam ferramentas de inteligência artificial devem compreender seu funcionamento básico, os limites dos modelos e os critérios que orientam suas respostas. Sem esse domínio, corre-se o risco de uma aceitação cega, que enfraquece o controle, compromete a crítica e dilui a responsabilidade funcional.
Também se impõe a criação de mecanismos de rastreabilidade, com o fito de manter uma trilha de auditoria que registre como, quando e em que medida a IA influenciou os documentos gerados. Esse controle fortalece a transparência, permite identificar falhas, facilita correções e assegura a legitimidade do processo decisório.
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Além disso, é imprescindível que sejam estabelecidas diretrizes internas claras sobre o uso da IA na elaboração dos artefatos técnicos da contratação, uma vez que políticas institucionais de governança algorítmica são fundamentais para garantir integridade, coerência e aderência aos princípios constitucionais que regem a Administração Pública.
Não se trata, portanto, de rejeitar a inteligência artificial no âmbito das contratações públicas. Pelo contrário: trata-se de utilizá-la com inteligência, consciência e responsabilidade. A automatização pode agregar valor — desde que não dispense o conhecimento técnico, a análise crítica e o compromisso com os resultados das políticas públicas.
Afinal, diante da pergunta que dá título a este artigo – se vivemos uma inovação com discernimento ou uma delegação sem controle –, a resposta não está na tecnologia em si, mas na forma como ela é incorporada. A IA pode ser ferramenta qualificada a serviço do planejamento público, ou um atalho perigoso para a abdicação silenciosa do juízo técnico.
O DFD, o ETP e o TR são, enfim, a “alma” da contratação pública. Se forem mal construídos, todo o processo licitatório será comprometido — e, com ele, o interesse público. A tecnologia até pode ser uma aliada na escrita. Mas o conteúdo, o critério e a responsabilidade seguem sendo tarefas indelegáveis da razão humana.