Todos são iguais perante a lei, ensinam os professores no primeiro ano dos cursos de Direito. Mesmo postulando que isso seja verdade, em que medida a lei é aplicada da mesma maneira nos litígios judiciais entre quem dispõe de recursos e preparo e quem não tem? Em que medida o poder econômico dos primeiros os beneficia no andamento dos processos e nas decisões judiciais?
Estas indagações foram o ponto de partida de uma das mais importantes pesquisas feitas há algumas décadas nos Estados Unidos, intitulada “Why the ‘haves’ come out ahead: speculations on the limits of legal change”, e que, convertida em livro, tornou-se um dos clássicos no tema direito e sociedade.
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Ao mostrar como o sistema judicial é muito mais do que um simples conjunto de normas que deveriam ser aplicadas mecanicamente e ao analisar as limitações da Justiça como fator de mudanças sociais em larga escala, a pesquisa destruiu a crença de que os tribunais seriam a principal força equalizadora na sociedade americana.
Partindo de uma assertiva de Jean Jacques Rousseau, para quem “o espírito universal das leis favorece o forte em oposição ao fraco e ajuda aqueles que têm posses em contraposição aos que não têm”, o jurista e sociólogo norte-americano Marc Galanter, professor da respeitada Wisconsin Law School (Madison), analisou como nos tribunais de seu país são tratados os haves (ou seja, os que têm) e os have-nots (ou seja, os que não têm).
A pesquisa começou a ser realizada entre 1960 e 1970 – um período de triunfo dos movimentos em prol dos direitos civis, de proliferação da advocacia de interesse público e de expansão dos serviços judiciais em favor dos pobres.
Apesar desse progresso, quando foi concluída em 1974, depois de ser amplamente debatida nas reuniões da Law and Society Association, a pesquisa constatou que a ascendência dos ricos vinha aumentando cada vez mais na sociedade americana. Daí o título que foi dado a ela, sob a forma de uma indagação: “Por que quem tem sai na frente?”.
Entre as respostas, uma é que os repeat players (isto é, os litigantes habituais, como magazines, bancos, financeiras, seguradoras e fábricas) têm mais informação e conhecimento técnico do que os one-shooters (os atiradores de um só disparo) – ou seja, os litigantes eventuais, tais como o cônjuge que se divorcia, o requerente envolvido num acidente de trânsito e o inquilino de uma moradia alugada.
Associada a essas distinções, uma segunda resposta foi que litigantes habituais no sistema judicial, tais como empresas, associações e organizações governamentais, têm a vantagem de conhecer não apenas a burocracia de todas as instâncias dos tribunais, mas, igualmente, a trajetória profissional de seus ocupantes.
Em outras palavras, sua origem social, as universidades em que se formaram, os textos que escreveram e a linha doutrinária de suas sentenças. Já os litigantes eventuais, que em sua maioria são pessoas físicas ou pequenos comerciantes e pequenos prestadores de serviço, não dispõem do que Marc Galanter chama de “vantagens culturais” e de “vantagens corporativas”.
Por isso, aposentados em conflito com a Previdência Social, contribuintes em litígio com a Receita Federal, vítimas de danos em discussão com seguradoras e financeiras, consumidores em contenda com instituições bancárias tendem a enfrentar dificuldades para compreender a tecnicalidade processual e as implicações dos litígios em que são parte.
Essas dificuldades tendem a ser maiores quanto menores são a formação e o status social dos litigantes sem grandes recursos. O que, por consequência, leva-os a contratar advogados com origens socioeconômicas mais baixas, que são formados em faculdades sem maior prestígio acadêmico e que trabalham sozinhos, muitas vezes com base em livros comprados a prazo, como lembra Galanter.
Uma terceira resposta é que os litigantes habituais também têm pronto acesso aos grandes escritórios de advocacia, desfrutam de economia de escala, têm baixos custos iniciais em qualquer caso e ainda contam com diferentes oportunidades para “desenvolver relações informais facilitadoras com os encarregados institucionais”, tais como magistrados, procuradores de Justiça e parlamentares.
Segundo Galanter, os litigantes habituais também sabem:
- manter sua credibilidade como “combatentes”;
- firmar sua reputação como “negociadores”;
- fazer lobby;
- discernir quais regras têm maior possibilidade de “penetrar” e quais tendem a permanecer como simples compromissos simbólicos; e, por fim,
- desenvolver estratégias “minimax”, minimizando as probabilidades de perda máxima.
Por diversas vezes sugeri aos meus alunos na disciplina de Sociologia do Direito do curso de pós-graduação na USP que, em seu trabalho semestral, fizessem uma leitura crítica da pesquisa de Galanter, por um lado, e que também levassem em conta a realidade do Judiciário brasileiro, por outro lado. O resultado foi ótimo.
Pós-graduandos que aceitaram a sugestão analisaram práticas discutíveis como encontros de magistrados ou de procuradores de Justiça com empresários em hotéis de cinco estrelas e resorts, contratação de ministros de cortes superiores por grandes bancos para dar palestras aos seus advogados, criação de faculdades particulares por magistrados que também passam a atuar como empresários, e por aí vai.
Nos últimos anos, a imprensa vem destacando um evento jurídico realizado anualmente na Universidade de Lisboa, o Fórum de Lisboa. Ele é organizado por um instituto de ensino jurídico particular com sede em Brasília. Fundado há 27 anos, o instituto tem um ministro do Supremo Tribunal Federal e seu filho como sócios majoritários.
Entre os participantes do evento em Lisboa costumam ser convidados vários ministros de Estado, magistrados de diferentes instâncias e cortes, governadores, deputados federais, senadores, industriais, empreiteiros, banqueiros, advogados dos maiores escritórios brasileiros e até lobistas.
Segundo os críticos deste tipo de evento e do que costuma se passar em seus bastidores, sua simples realização tende a provocar acesso desigual entre partes processuais, por um lado, e graves conflitos de interesse, por outro lado. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, na edição do evento em 2024 um banqueiro (que no passado foi preso temporariamente sob suspeita de tentar obstruir a Operação Lava Jato) ofereceu um coquetel fora da agenda oficial em um luxuoso restaurante lisboeta.
“O coquetel foi disputado por advogados e por lobistas. O local foi pensado para que as autoridades tivessem mais privacidade”, afirmou o jornal. Já os responsáveis pelo fórum e pelo instituto jurídico brasileiro alegaram que a “participação de executivos se dá exclusivamente na condição de palestrantes para contribuir (sic) com discussões temáticas de interesse público e sem quaisquer contrapartidas”.
Como verso e reverso de uma moeda, as implicações morais constituem uma das preocupantes faces dessa prática. A outra face mostra como a importante e respeitada pesquisa de Marc Galanter, que conheci quando fiz meu pós-doutorado na Wisconsin Law School, continua atual e influente.