Nas últimas semanas, uma parcela considerável da sociedade vem pedindo ao presidente da República algo que está longe de ser simples, mas que é urgente e necessário: a nomeação de uma mulher negra para o Supremo Tribunal Federal (STF).
A Constituição Federal, em seu artigo 101, caput, estabelece que os ministros do STF serão nomeados pelo presidente da República, após aprovação da escolha pela maioria absoluta do Senado, dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.
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Temos, portanto, um desenho em que o Poder Executivo escolhe um membro do Poder Judiciário, o que, inevitavelmente, traz um componente político à decisão. No entanto, esse fator não esvazia o processo nem o contamina, pois a política, nesse contexto, é o espaço em que se definem as prioridades de um país. Toda escolha pública revela um projeto de nação e de futuro.
Nesse sentido, organizações civis, movimentos sociais e personalidades públicas vêm se unindo em torno de um pedido coletivo e legítimo: que o próximo nome escolhido para o STF seja o de uma mulher negra. E nomes não faltam.
Entre eles, destacam-se Lívia Vaz, promotora de Justiça na Bahia e referência nacional na luta antirracista e feminista no Direito; Vera Lúcia Araújo Santana, advogada que já foi indicada duas vezes pelo STF à lista tríplice para o Tribunal Superior Eleitoral; e Manuellita Hermes, procuradora federal e coordenadora-geral de Assuntos Internacionais e Judiciais do Ministério dos Direitos Humanos.
Essas mulheres não apenas preenchem os requisitos constitucionais de notório saber jurídico e conduta ilibada, como também representam as mães solo que enfrentam o sistema de justiça brasileiro, as mães que buscam respostas pela morte de seus filhos vítimas da violência contra corpos negros, as mulheres que se enfileiram nas portas dos presídios como mães e companheiras de homens encarcerados. Representam, sobretudo, os corpos de mulheres negras historicamente reduzidos a imagens de controle submissas, hipersexualizadas e objetificadas que, pela lente da interseccionalidade, carregam em si as múltiplas opressões de gênero, raça e classe, mas também a luta da resistência e da transformação social.
Desse modo, a escolha de uma mulher negra para o STF ultrapassa o campo simbólico e alcança o plano da reparação histórica. Mais do que um gesto político, seria a implementação prática dos valores constitucionais, bem como a efetivação da igualdade material, e não apenas formal. Essa nomeação corresponderia ainda aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil que reconhecem a necessidade de paridade de gênero e diversidade racial nos tribunais e órgãos de cúpula do sistema de Justiça[1].
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Ademais, é evidente que há outros nomes com notável saber jurídico e reputação ilibada – e ninguém negaria isso, por exemplo, em relação ao ministro Flávio Dino. Todavia, neste momento histórico, o que está em jogo não é apenas competência técnica, mas a oportunidade de romper com a reprodução simbólica e estrutural do poder que, por séculos, tem mantido os mesmos rostos e as mesmas vozes no topo das instituições.
Portanto, a escolha de uma mulher negra para o Supremo Tribunal Federal representa a ruptura com a política dos compadres brancos, perpetradores e beneficiários do poder patriarcal e heterossexual branco. Representa, também, a possibilidade de inaugurar um novo paradigma de Justiça, um paradigma que considera quem até aqui foi mantido à margem.
Em síntese, uma ministra negra no STF não seria apenas um gesto político: seria um passo civilizatório, um ato de coragem e coerência com o país que queremos ser.
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[1] A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, ONU, 1979); Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (OEA, 2013); e a Agenda 2030 da ONU, especialmente o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 5 (Igualdade de Gênero) e o ODS nº 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes).

