Nos últimos dois anos e meio, todas as discussões travadas sobre a regulação e o fomento à agenda digital esbarraram em uma questão um tanto quanto polarizada. Em qualquer um dos Três Poderes no nível federal, o estabelecimento de um órgão ou ente regulador para tratar dos objetos de regulamentações divide opiniões.
Tem sido assim tanto no caso de plataformas digitais quanto de inteligência artificial. Considerando as definições que a geopolítica impõe ao Brasil, talvez seja o caso de construir um caminho do meio.
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Candidaturas colocadas
A divisão básica se dá entre duas agências que se debruçam sobre os temas do ambiente online. Mas de forma insuficiente. De um lado, temos a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), criada há quase 30 anos, e sua competência para lidar com um setor que por si só já é um mundo.
De outro, a jovem Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD) que regula e fiscaliza de uma padaria ao sistema financeiro e engatinha esbarrando na falta de recursos e pessoal. Correndo por fora, temos o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que virou uma certa unanimidade no caso da regulação dos mercados digitais.
As três possibilidades surgem em debates complementares que careceriam de uma abordagem coordenada e integrada, talvez a principal deficiência dos rumos atuais do fomento e regulação do ecossistema digital brasileiro. A alternativa Anatel surge em pelos menos quatro projetos de lei (1.212/2025, 2.768/2022, 2.120/2023, 4.557/2024), enquanto a ANPD foi a opção da Câmara nos PLs 4.691/2024 e 4.976/2024, e do Senado no caso do PL de data centers de IA (3.018/24).
O PL 2.338/2023 (IA), porém, para contornar a reserva de iniciativa de matérias que disponham sobre competências de órgãos da administração pública, deixou de expressar a que órgão caberia a regulação da inteligência artificial. E o PLP 234/2023, da mesma forma, deixa ao regulamento definir quem será o órgão fiscalizador e regulador do ecossistema brasileiro de monetização de dados.
Segundo a imprensa, o Cade aparece no PL de regulação econômica tanto da Câmara quanto no futuro texto do Ministério da Fazenda, enquanto a ANPD surge novamente na minuta de serviços digitais do Ministério da Justiça e da Segurança Pública.
Vantagens e desvantagens
Dadas as divergências sobre a opção por uma ou outra autarquia, coloca-se uma questão incômoda que tem sido evitada por narrativas variadas. Por que não se pode pensar em um órgão único, enxuto, que atue conectando os pontos da agenda digital que exigem alinhamento constante entre diversos agentes?
A resposta positiva esbarra em argumentos muitas vezes falaciosos. Um deles é a falta de recursos para criar uma nova estrutura dentro do governo apesar de nunca ter sido feito um estudo sobre o impacto orçamentário. O que não se diz é que no caso da escolha pelas agências atuais, principalmente no caso da ANPD, teria que haver investimento pesado, pelo menos, em recursos humanos.
Outra justificativa para não se pensar em uma solução mais criativa é que não se deve colocar no mesmo ambiente fomento e regulação. O que não se diz é que a Comissão Europeia faz isso em sua comissão especializada para os temas digitais. Mesmo no Brasil, essas funções estão lado a lado no caso da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Realidade semelhante se dá em diversos ministérios de outros países que tratam de regulação e gerenciam fundos setoriais[1].
Somando-se a tudo isso, argumenta-se que não haveria ânimo para se aprovar um novo órgão pelo Parlamento, mesmo que proposto pelo Executivo. O que faz um pouco de sentido considerando a ideia de criação da Agência Nacional de Cibersegurança pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, cuja luta persiste há anos.
Por fim, alguns formuladores de políticas públicas consideram ineficiente uma vez que vários órgãos já cuidam destas pautas na Esplanada dos Ministérios. Isso nunca impediu que surgissem novas alternativas, como foi o caso das nove agências reguladoras criadas durante o governo Fernando Henrique Cardoso, além da Anac e ANM, criadas em 2005 e 2017, respectivamente, e da própria ANPD em 2018.
Os argumentos favoráveis a um órgão único para a agenda digital são os mais estratégicos. Vinculado à Presidência da República (veja a proposta abaixo), teria maior poder político e inserção no mais alto nível decisório governamental. Do ponto de vista da coordenação teria mais proximidade com uma visão geral da administração em termos de recursos e competências instaladas, que é própria do centro de governo.
Isso daria condição de criar maior sinergia entre programas e políticas públicas, evitando as famosas colchas de retalho que têm marcado algumas iniciativas recentes. Orçamentariamente, um órgão enxuto, que poderia, inicialmente, exercer a prerrogativa de requisitar recursos humanos sem ônus, impactaria muito menos que uma reestruturação de entidade existente. Ao longo do tempo, contudo, uma vez consolidada, poderia constituir um quadro próprio com servidores efetivos, concursados, para exercer atividades técnicas de regulação e fiscalização.
Ventos europeus
Seja qual for o supervisor do campo tecnológico, o fato é que o pacote de temas da agenda digital que demandam atenção dos Estados nacionais só tem crescido nos últimos anos. Relacionamos aqui uma lista não exaustiva: regulação de plataformas (mercados e serviços), proteção de crianças e adolescentes, governança da internet, inclusão digital, IA, infraestrutura digital, economia de dados, política industrial para transformação digital, governo eletrônico, semicondutores, cibersegurança, defesa cibernética, conectividade, estatísticas.
Tudo isso está imbricado na relação vinculada aos mesmos atores a serem regulados. Não à toa, a União Europeia regulamentou plataformas com leis-gêmeas (DSA e DMA). E tem feito pontes destes normativos com IA (AI Act). Desde 2016, o Parlamentou Europeu aprovou mais de uma dezena de legislações que tratam desta lista.
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E uma nova preocupação no radar europeu está mobilizando os países a irem além de regulações. Trata-se da soberania digital, causada por ameaças no campo geopolítico e comercial, e a dependência a agentes estrangeiros na constituição de seus ecossistemas nacionais. Alemanha, França, Bélgica e Holanda estão liderando este processo, criando órgãos e empresas estatais para cuidar do tema. A pauta vai além de data centers e serviços de nuvem, chegando a modelos de IA e suítes de aplicativos em código aberto.
Uma proposta concreta
Tudo isso posto, chega-se ao que interessa. Uma breve proposta da criação de um órgão nacional para a soberania do ecossistema digital brasileiro com as seguintes características.
Modelo – Uma autarquia especial nova, composta por direção colegiada com mandato definido, vinculada à Presidência da República, enxuta e preparada para enfrentar de forma eficaz os avanços tecnológicos no que concerne não só à regulação, seja de mercados ou de serviços digitais. Ele deve propor, coordenar e coimplementar, com demais órgãos de Estado, políticas públicas para a agenda digital, incluindo regulação, desenvolvimento econômico e inovação.
Estrutura – Um quadro de funcionários fixo reduzido inicialmente, cujo quantitativo deve ser definido em função de suas competências. A parte mais robusta dos servidores seria inicialmente requisitada de órgãos que tenham expertise e competência afim com áreas interligadas como economia digital, inteligência artificial, telecomunicações, infraestrutura digital, cibersegurança, dados, audiovisual e propriedade intelectual[2]. Contudo, ao longo do tempo, será imprescindível a constituição de um quadro próprio de pessoal, com estabilidade e proteção especial contra a perda do cargo, essencial para o exercício do poder de polícia pelo órgão.
Governança – Além de uma diretoria colegiada, à semelhança das agências reguladoras, teria um conselho deliberativo e consultivo formado por uma diversidade de segmentos sociais, políticos e econômicos, para sugerir temas e ações à autoridade e supervisionar sua atuação.
Financiamento – Como nos serviços de telecomunicações e outros setores onde existem agências reguladoras, ela necessitaria de acesso a recursos orçamentários não contingenciáveis capazes de dar conta da: fiscalização e manutenção da autoridade; um destinado a financiar as políticas públicas da agenda digital; e outro voltado a fomentar o desenvolvimento tecnológico e a inovação. Os recursos viriam da tributação de empresas estrangeiras e brasileiras de serviços digitais em uma alíquota a ser definida por lei. A blindagem de recursos contra contingenciamentos, embora desejável, precisaria superar a resistência da área econômica do governo e ser incorporada, pelo menos, à Lei de Diretrizes Orçamentárias, a cada ano, no anexo próprio.
Este texto é só um início de conversa e não sua conclusão. Todas estas ideias carecem de detalhamento e estudos de viabilidade em vários sentidos. Mas o apelo aqui é para que uma alternativa ao impasse da polarização seja superado com uma ideia pioneira, viável, criativa e mais sistêmica para atingir o objetivo de desenvolver a soberania digital brasileira e sua relação com o mundo lá fora.
[1] Na China, que vem avançando no tratamento de dados como ativos, em 2014 foi criada a Administração do Ciberespaço, como a principal agência regulatória responsável pela supervisão, regulamentação e fiscalização do ciberespaço e da economia digital na China. Em 2023, uma alteração transferiu para uma nova entidade – a Administração Nacional de Dados – toda a regulação e fomento a dados e economia digital. As duas agências coordenam esforços com outros órgãos governamentais, como o Ministério da Indústria e Tecnologia da Informação (MIIT) e o Ministério da Segurança Pública.
[2] Criada em 2018, a ANPD conta, atualmente, com 266 servidores, dos quais apenas 4 classificados como “ativo permanente”, segundo dados do Portal da Transparência. Outros 244 são cedidos ou requisitados e 3 são servidores em exercício descentralizado. Em maio de 2025, a ANPD publicou edital para selecionar 213 servidores temporários para contratação imediata, por até 5 anos.