As comemorações do Dia Internacional da Propriedade Intelectual, em 26 de abril, trouxeram reflexões sobre o cenário político-econômico internacional que se apresentou nos primeiros quatro meses deste ano. Além do noticiário sobre os impactos da inteligência artificial, a propriedade intelectual esteve envolvida em discussões sobre comércio internacional, regulação e tarifas, diante da nova realidade imposta pelas políticas comerciais do atual governo norte-americano.
Em que medida o novo cenário comercial internacional influencia o sistema de propriedade intelectual global? De que forma direitos de propriedade intelectual poderão ser impactados (ou já estão sendo) neste novo contexto? Estas são as questões exploradas neste artigo.
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Economia internacional e propriedade intelectual
Pode-se dizer que o sistema de propriedade intelectual contemporâneo se fundou na concepção da Organização Mundial do Comércio, em 1995. Naquele momento, houve a adoção do Tratado TRIPS – acrônimo em inglês para Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights.
Diferentemente dos outros tratados internacionais relacionados aos direitos de propriedade intelectual[1], administrados pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual, o TRIPS inovou ao estabelecer uma conexão direta entre os direitos de PI e regras do comércio internacional, que vinculariam os países na nova OMC[2]. Três décadas atrás, em um contexto de globalização e liberação de mercados, regras harmonizadas entre países trariam segurança e previsibilidade aos agentes econômicos.
À época, já se compreendia que direitos de PI possuíam relevância econômica para diferentes setores e atividades empresariais[3], ainda que discrepâncias existissem entre os países. Regular apenas as regras comerciais entre produtos “tradicionais” (como commodities) não seria suficiente para avançar no ideal de globalização comercial, principalmente por parte dos países mais desenvolvidos do norte-global. Assim, vários países tiveram de alterar suas normativas sobre PI para adequação ao TRIPS, como o Brasil[4].
Inovadora também foi a possibilidade de países serem questionados e sancionados, no contexto da OMC, por violações dos tratados da entidade, incluindo o TRIPS. Ao contrário de outros diplomas vigentes, a estrutura concebida para a OMC permite a seus membros travarem disputas com seus pares em situações de descumprimento de normas ou controvérsias sobre sua adequada aplicação.
Em uma expressão difundida, os tratados da OMC ‘possuem dentes’ e disputas entre países são uma realidade: foram 638 processos iniciados desde 1995, dos quais 44 são sobre o TRIPS[5]. O Brasil é membro ativo, tendo iniciado 34 processos e respondido a outros 17. Como terceiro interessado, atuou em 175 casos[6]. Em 2025, 7 processos; foram iniciados perante a OMC: 5 deles são contra os EUA, mas nenhum relacionado ao TRIPS, por ora.
Fato é que propriedade intelectual pós-TRIPS é elemento central em discussões econômicas globais. À medida que mais setores empresariais de peso têm na PI o alicerce de seus negócios, a pressão em seus governos interfere na política global e influencia decisões de parte a parte, como nos casos abaixo.
A reciprocidade comercial e a Lei 15.122/2025
Todo o contexto acima é relevante para compreender alguns desdobramentos nesse início de 2025 no Brasil, especialmente a edição da Lei 15.122/2025, em regime de fast track.
A denominada Lei da Reciprocidade foi até agora dos poucos resultados concretos deste ano legislativo. Anteriormente PL 2088/2023, apresentado pelo senador Zequinha Marinho (Podemos -PA) com objetivo de dotar o Brasil de poderes para revidar ameaças comerciais relacionadas a barreiras ambientais, o texto ganhou contornos mais amplos e contundentes com proposta de substitutivo apresentado pela senadora Tereza Cristina (PP-MS), em 28 de fevereiro, sexta-feira de Carnaval.
É nesse momento que a realidade imposta pelas decisões tarifárias do governo americano (e possibilidade de aumento) fez o improvável: uniu governo e Legislativo em texto que garante ao país poderes amplos de retaliação comercial unilateral. E mais: incluiu a possibilidade de que a retaliação ocorra pela suspensão ou revogação de direitos de propriedade intelectual. Sancionada em 11 de abril, sua aprovação em tempo recorde evidencia a urgência em se preparar para potenciais disputas econômicas vindouras.
Igualmente, a inclusão de direitos de PI ao texto confirma o grau de instrumentalidade que tais direitos possuem no contexto econômico global – são moedas de troca para ameaças à “competitividade internacional brasileira”, como diz a lei. Competitividade essa que não deriva de exportação de produtos inovadores[7]. Logo, poder suspender ou restringir direitos de PI torna-se alternativa na mesa de negociações quando é do outro lado que estão representantes de setores intensivos em PI[8].
‘Delete all IP Law’ é o desejo de parte do Vale do Silício?
Em meados de abril, Jack Dorsey (cofundador do X e da fintech Block) provocou debate ao tuitar a seguinte frase: “eliminem todas as leis de propriedade intelectual” (em inglês “delete all IP Law”). O tema ganhou mais fôlego ainda com uma postagem de Elon Musk na sequência, concordando com Dorsey.

As empresas nas quais ambos participam detêm diferentes direitos de PI. Há quem apontasse que o X tem 2.500 patentes em vigor e 160 marcas registradas, enquanto a Block teria 2.100 patentes ativas e 60 marcas registradas[9]. Igualmente, grande parte dos ativos destas empresas dependem de proteção por segredos de negócio e informações confidenciais, alinhadas em NDAs com seus empregados e parceiros. Afinal, qual lei de PI se pretende eliminar, diante de tais ativos?
Atualmente está em discussão na União Europeia o Código de Prática, que auxiliará empresas a cumprirem com o AI Act, regulamento sobre inteligência artificial adotado em 2024. A apresentação do Código, elaborado por 30 especialistas, está prevista para maio e junho de 2025. Há expectativa sobre a atuação de empresas de tecnologia interessadas em desenvolver sistemas de IA no contexto do cumprimento de leis de direitos autorais em vigor na Europa.
Direitos autorais têm incendiado o debate em inteligência artificial, como tratado em texto anterior desta coluna. Como parte dos direitos de PI, o posicionamento de Dorsey e Musk, e sua representatividade no governo dos EUA[10], aduzem mais uma vez à interação entre PI e geopolítica nesses nossos tempos.
O Tratado de Preparação para Pandemias e a OMS sem os EUA
Após mais de 3 anos desde a instauração do Órgão de Negociação Intergovernamental pela Organização Mundial da Saúde (OMS), com 13 edições formais de negociações entre membros, os 194 países que participam da entidade chegaram ao texto final do Tratado de Preparação de Pandemias.
O novo Tratado, vigente a partir de maio, deverá reger a atuação dos países-membros em pandemias, como a de Covid-19. A intenção é que haja mais coordenação entre os países na prevenção, preparação e combate de futuras ameaças pandêmicas.
Temas de PI também permeiam o texto e foram, no início das discussões, potenciais entraves. O novo tratado aborda formas de impulsionar transferências de tecnologia de saúde por países detentores para países em desenvolvimento, a fim de descentralizar a produção de medicamentos e vacinas – desde que em termos conjuntamente acordados.
Está prevista a criação de um sistema de acesso a patógenos e compartilhamento de benefícios com países cujos territórios tais materiais sejam identificados, para desenvolvimento de medicamentos e vacinas. O Sistema de Acesso e Compartilhamento, administrado pela OMS, pretende fazer a identificação e tratamento dos materiais com segurança e transparência, garantindo a repartição de benefícios aos países originários, à semelhança do sistema instituído pelo Protocolo de Nagoya e a Convenção de Biodiversidade.
O consenso na OMS foi comemorado como prova de que ainda há espaço para coordenação multilateral global, incluindo temas de PI. Contudo, é de se notar que a decisão foi alcançada sem os EUA, que deixaram a OMS no início do ano. Assim, questiona-se o sucesso do Tratado frente à ausência americana, especialmente se considerarmos sua liderança na inovação biofarmacêutica mundial.
Por fim, questiona-se também: quais serão os futuros debates político-internacionais em que temas de propriedade intelectual terão posição de destaque ou influência? Afinal, certo está que na mesa de negociação há bastante espaço para tais direitos, seja por seu fortalecimento ou sua flexibilização… Quem viver, verá!
Em alta | abril.25
- Brasil: Interfarma apresenta dados relacionados ao backlog de patentes farmacêuticas em evento realizado com Correio Braziliense por conta do Dia Internacional da Propriedade Intelectual. A entidade afirma que depósitos de patentes do setor biofarmacêutico têm levado em média 7,8 anos para primeira decisão pelo INPI[11] – tempo que pode ser ampliado em caso de recurso.
- EUA: A OpenAI enfrentará mais um processo judicial por violação de direitos autorais. Ziff Davis, empresa detentora de 45 veículos de mídia que publicam quase 2 milhões de artigos por ano, entrou com processo judicial contra a OpenAI. Junto com The New York Times, The Intercept e outros veículos, a Ziff Davis busca na justiça americana impedir a OpenAI de usar sua base de dados como treinamento do Chat GPT[12].
- Brasil. A cantora Anitta quer impedir registro de marca pela empresa Farmoquímica do termo “Anitta”, na classe de cosméticos. O termo, idêntico ao nome artístico da cantora, é marca registrada pela empresa farmacêutica na classe de medicamentos e utilizado para seu produto contra vermes, porém na grafia “Annita”. As partes aguardam a decisão do INPI[13].
- China. Relatório da Universidade de Stanford indica que a China mantém desde 2023 liderança no número de patentes registradas para tecnologias de inteligência artificial (69,7%). De 2010 a 2023, o número de patentes relacionadas à tecnologia aumentou substancialmente – de 3.833 para 122.511. Em 2024, o aumento foi de 29%.[14]
[1] Como a Convenção de Berna de 1886 e a Convenção de Paris de 1883, tratados internacionais mais antigos de propriedade intelectual que abordam, respectivamente, direitos autorais e direitos industriais. Ambos seguem vigentes até hoje.
[2]A Organização Mundial do Comércio conta em 2025 com 164 países membros, que representam 98% do comércio internacional global. Seus quatro tratados estão relacionados a diferentes temas comerciais de produtos, serviços e propriedade intelectual.
[3] Como exemplo, tomemos a Microsoft, que completou 50 anos em 2025 e é hoje a empresa mais valiosa do mundo. Entre 1983 e 1998, foram lançados os programas Word, Excel e o Windows. Mais detalhes em https://www.poder360.com.br/poder-tech/microsoft-completa-50-anos-relembre-a-trajetoria-da-empresa/#:~:text=A%20companhia%20fundada%20por%20Bill,mundo%2C%20atr%C3%A1s%20somente%20da%20Apple.
[4] As Leis de Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996) e de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998) foram alteradas na década de 90 em parte por conta do TRIPS. Além destas, as Leis de Software (Lei 9.609/1998) e a Lei de Proteção dos Dossiês de Testes (Lei 10.603/2000) foram adotadas pelas mesmas razões.
[5] Notícias relatam desdobramentos de caso mais recente entre União Europeia e China, com contestação da decisão preliminar emitida pela OMC por parte da EU. O processo permanece em sigilo, contudo. Mais detalhes disponíveis em https://istoedinheiro.com.br/ue-contesta-decisao-preliminar-da-omc-em-disputa-de-propriedade-intelectual-contra-china/
[6] Informações sobre os processos perante a OMC estão disponíveis no site da entidade: https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/dispu_e.htm.
[7] Principalmente petróleo, etanol, aço, alumínio, celulose, carne bovina e café. No contexto da relação comercial com os EUA, atualmente cerca de 80 bilhões de dólares, a representatividade de cada país está praticamente equilibrada em 40 bilhões para cada um.
[8] A possibilidade de retaliação comercial com uso de direitos de PI adotada pela Lei 15.122/25 remete a caso emblemático DS 267/2002, que tramitou perante OMC entre EUA e Brasil, o ‘caso do algodão’. Naquele contexto, tendo vencido processo perante OMC quanto a descumprimento americano no comércio de algodão dentre os países, o Brasil inaugurou a possibilidade de retaliação cruzada de direitos de PI para outros aspectos comerciais da OMC. Tal decisão deu surgimento à Lei 12.270/2010 (anteriormente uma medida provisória) que dispõe sobre medidas de suspensão de concessões e outras obrigações brasileiras relativas a direitos de PI em caso de descumprimento de decisão favorável da OMC. A permissão para retaliação cruzada e a movimentação brasileira para sua efetivação contribuíram para que as partes chegassem ao acordo indenizatório em 2014.
[9] Conforme relata Dr. Benita Mackay em postagem na Trademark Law Magazine de 24.4.25, disponível em https://trademarklawyermagazine.com/delete-all-ip-law-a-billionaires-switch-from-proprietor-to-opponent/.
[10] Há notícias de que missão diplomática dos EUA teria enviado carta à UE para questionar termos do Código de Prática que está sendo trabalhado. Há informações de fontes próximas aos debates, interessadas em proteger interesses de empresas americanas de IA. Detalhes na reportagem da Euro News em https://www.euronews.com/next/2025/04/30/big-tech-watered-down-ai-code-of-practice-report.
[11] O evento está disponível no Youtube do Correio Braziliense, pelo link https://www.youtube.com/watch?v=mScJqZSLOsE.
[12] Detalhes e acesso à petição inicial do processo através de reportagem da The Verge em https://www.theverge.com/news/656044/ziff-davis-sues-openai-ign-cnet-pcmag.
[13] Detalhes da disputa disponíveis no G1 em https://g1.globo.com/saude/noticia/2025/04/29/anitta-disputa-para-barrar-uso-do-nome.ghtml.
[14] Detalhes do Artificial Intelligence Index Report 2025 podem ser acessados pelo site https://hai.stanford.edu/ai-index/2025-ai-index-report.